Sábado de julho de 2016. José Batista
de Almeida, dono de padaria no centro de Barbalha e sua esposa Carminha
Sampaio Batista, professora do Ensino básico do município, foram almoçar com
doutor Maurício Batista de Alencar e sua família. Esse médico cardiologista,
primo de José Batista, residia em Recife. Ele, a esposa recifense e pediatra,
mais o casal de filhos solteiros, nascidos em Recife, vieram passar no Caldas
do Bom Jesus dos Aflitos, distrito de Barbalha, quinze dias de férias. Como
José Batista possuía casa de veraneio no Caldas, cedeu-a ao primo, por sê-la
agradável e confortável, além de uma vista linda para a Chapada do Araripe e
para o verdejante Vale do Cariri-cearense.
Durante o almoço, já esquentado de
uísque sem gelo, doutor Maurício quis saber de Zé Batista (assim era conhecido
em Barbalha) o que ocorrera com o abaixo-assinado que se destinava cortar a
castanhola da calçada de Zé-de-júlia. Essa súbita lembrança pegou de surpresa
Zé Batista, uma vez que acontecera anos atrás, ou melhor, na véspera da viagem
de volta para Recife de doutor Maurício e família, quando de suas férias no
Caldas, em julho de 2010.
Naquele instante de silêncio na mesa,
Zé Batista se relembrou do tempo de garoto deles dois. Doutor Maurício
apreciava ouvir histórias, mas sempre querendo saber os mínimos detalhes. E,
diante da insistência do médico, Zé Batista pacientou-se para assistir à
demorada golada de uísque e às repetições do primo doutor a querer saber sobre
o abaixo-assinado. Ansiava ele ouvir a narração do primo. Até encheu
de cerveja o copo de Zé Batista, para animá-lo na contação da história.
Após emborcar o copo de vez, Zé Batista
lhe revelou a confusão debaixo da castanhola de Zé-de-júlia, a qual chegou a
repartir o Caldas em dois. Devido a isso, doutor Maurício derramou no copo mais
uísque para excitar sua curiosidade.
Zé Batista o satisfez com o detalhe: a confusão foi iniciada perto do meio-dia de sol morno. Só se ouvia, no Caldas, o vozerio do balneário. Na calçada da casa de Zé-de-júlia, De-jesus se achava debaixo da castanhola, sentada no banquinho de madeira, que trouxera de casa, e debulhava, com a peneira entre as pernas, andu verde.
Zé Batista o satisfez com o detalhe: a confusão foi iniciada perto do meio-dia de sol morno. Só se ouvia, no Caldas, o vozerio do balneário. Na calçada da casa de Zé-de-júlia, De-jesus se achava debaixo da castanhola, sentada no banquinho de madeira, que trouxera de casa, e debulhava, com a peneira entre as pernas, andu verde.
De sua janela, ao ver a amiga De-jesus
sozinha, Maria-preta animou-se para sair. Deixando a porta aberta, a mulher se
escorou em sua cerca de arame farpado. Dentro do seu terreiro, agarrada ao pau
da cerca, ficou a ouvir De-jesus, sem parar a debulhação, contar-lhe a
ignorância do Vicente-de-dôra.
O danado do Vicente, depois de cinco
meses a se esconder para não pagar a conta de luz da sua casa, ainda teve
desplante de empatar o empregado do governo de querer cortá-la. Segundo
De-jesus, Vicente-de-dôra era um lascado-de-jó, mas só pensava que tinha o rei
na barriga.
Para melhor explicar ao primo Maurício
quem era Vicente-de-dôra, Zé Batista estendeu-se: quando o mulato se
empanzinava de cachaça, ninguém se atrevia a conversar com ele. Pois foi assim
naquele dia do corte da luz. Vicente saiu de sua casa, foice à mão, olhos
estufados. Prometeu esfolar o filho de satanás que se atrepasse no poste com
chave de cortar os dois fios de seu barraco. Mostrando-se macho, gritou mais alto
para o funcionário estadual: “Seja macho e suba no poste preu deixar você que
nem linguiça pinicada”.
Para amenizar a situação, o homem do
corte buscou se valer da esposa de Vicente. Explicou-lhe ser simples
funcionário, cumpria ordem da empresa. Só que Vicente não gostou. Encostou a
sua foice no nariz dele, mandando-o se afastar da Quina, sua mulher. De voz
mais alterada, alertou-lhe que, na casa dele, bicho de saia não era macho pra
resolver as coisas. Então, o empregado da companhia de eletricidade teve de
descer até Barbalha, trouxe dois soldados, que fizeram Vicente miar.
Antes de Zé Batista prosseguir, doutor
Maurício chamou Vicente de bicho estúpido, ignorante, merecedor de um bom
tratamento. Mas logo o doutor pediu desculpas ao primo por lhe ter atrapalhado.
Enquanto se enchia de mais uísque, ordenou ao primo continuar a
agradabilíssima história.
Zé Batista jogou mais uma isca no
conflito: Maria-preta comparou Vicente-de-dôra um pouco menos ignorante do que
Joaquim-de-genésio. Mas para que o primo havia dito aquilo. Doutor
Maurício, alterado na embriaguez, ficou a repetir: “Me conta, me conta, me
conta logo, primo bom”.
Quando Maria-preta se referiu ao
Joaquim-de-genésio, marceneiro da casa da frente, De-jesus parou de vez a
debulhação. Apanhou o cachimbo, entre duas pedras, para acendê-lo. Enquanto
jogava fumaça para as folhas da castanhola, ficou a ouvir Maria-preta disparar
a língua: Joaquim-de-genésio havia emprestado ao
cunhado Vicente sua calça branca, novinha, a qual fora presente de aniversário
lhe dado pela mãe e tendo sido usada na última passagem do ano. Mas o cunhado
lhe convenceu que iria ao casamento nas Cacimbas vestido nela.
Entretanto Joaquim-de-genésio, após
perceber ter praticado uma burrada, arrependeu-se. Botou na cabeça
que Vicente-de-dôra estragaria a calça, guardada com tanto zelo, enrolada no
saco plástico. No mesmo instante, mesmo com a mãe, que morava mais ele, lhe
pedir para não ir, Joaquim-de-genésio botou roupa e se esticou no rumo da
festa. Ficou a observar como o cunhado se comportava com sua calça. Na vez em
que o rapaz se sentou no tronco tosco de coqueiro, no alpendre da casa,
cochichou-lhe ao ouvido, para se levantar de lá. Pregou mais o olho nele.
Até que, numa hora do cunhado dançar a sós, embriagado, e tendo exagerado nos
passos, Joaquim-de-genésio explodiu na frente da gente toda: “Feche o diabo
dessas tuas pernas, Vicente. Tu vai rasgar minha calça”.
Doutor Maurício, não se contendo,
soltou a gargalhada tão alta, mais tão alta que Zé Batista e a casa se
assombraram. De novo, o primo doutor, de voz troante, deu seu parecer: “Que
ignorantão esse Joaquim-de-genésio, meu bom primo”. Devido a essa passagem, ele
se animou para abrir outra garrafa de uísque. Enquanto abria, insistia para que
o bom primo não parasse a história.
Zé Batista teve de continuar. De-jesus
quase derrubou a peneira do andu, de tanto rir e gritar: “Minha Nossa Senhora,
Joaquim-de-genésio não tem pingo de juízo. Avalie a vergonha do Vicente”.
Mas a conversa das duas mulheres foi
cortada, ao aparecer Joaquim-de-genésio no portão de sua casa. De-jesus quem
primeiro o cumprimentou. Até o convidou para ele vir para a sombra da
castanhola. E o bom é que nem deixou o rapaz-velho ajeitar o traseiro na galga
da calçada. Soltou a língua: “Coitado do teu cunhado. Tu envergonhou o
miserável na festa”.
- Mas que satanás botou a língua de
fora, De-jesus?
- A Maria-preta. Findou de contar
agorinha.
Pintou forte redemoinho embaixo da
castanhola na calçada da casa de Zé-de-júlia. Balançando o pau da cerca, como a
querer arrancá-lo, Maria-preta inchou a veia do pescoço. Rasgou o verbo pra
De-jesus: não aceitava ser chamada de fuxiqueira, de leva e traz. Logo ela que
não gostava de conversa de miolo de pote. Abriu mais o verbo: morava há trinta
anos na mesma rua, na mesma casa, criou os filhos batendo roupa pra fora, só
vivendo pra tomar de conta do marido e dos filhos. Se o Osébio, o marido, caía
na cachaça, não era da conta dum filho de quenga. E pinicou as palavras: a
rapariga da Olindina estava engasgada em sua goela. Nunca Olindina devia ter
chamado Osébio de viado. Mas se Osébio fosse, era dele se encantar com o vício.
De mãos na cintura, olhos arregalados de raiva, Maria-preta concluiu de voz
mais alterada: “Vão viver sua vida, lacraias do inferno”.
Antes de Joaquim-de-genésio, encostado
na castanhola, falar algo, De-jesus, com dedo indicador nos lábios e outra mão
mandando baixar a conversa, advertiu aos dois a aproximação do Vicente-de-dôra,
descendo ladeira da rua, pé lá, pé cá. De camisa ao ombro, voz troante,
aproximou-se da castanhola a esculhambar políticos e ricos de Barbalha. Notaram
as duas que ele havia tomado umas e outras. Assim, aproveitando-se da situação
de embriaguez de Vicente-de-dôra, adiantou-se Maria-preta: “Vai de novo,
Vicente. Não pague a tua luz não, desgraçado”. Parando no meio da rua,
Vicente-de-dôra se exaltou: "Quem foi o satanás que bateu com a língua nos
dentes, Maria-preta?".
- Foi a De-jesus, agorinha.
Reabriu-se confusão. Do meio da rua,
Vicente-de-dôra esculhambou De-jesus, dando-lhe cotoco. Chamou-a de velha
fuxiqueira, safada que nem cachorra no cio, em dia de lua nova.
Mandou-a correr em busca do bexiguento do marido, para os dois acertarem uma
velha conta, já que não podia dar peia em mulher, principalmente como De-jesus,
que não servia nem para se deitar na cama com o demo. E ainda mais a provocou:
“Vai, vai buscar teu galo velho, pra eu fazer ensopado dele. Nós dois temos
uma conta pra acertar”.
A tal conta, engasgada em
Vicente-de-dôra, ocorrera no mesmo dia do corte da energia na casa dele,
enquanto o funcionário se dirigia a Barbalha, para buscar reforço. Zezo, marido
de De-jesus, vendo a paciência toda do funcionário da companhia de
eletricidade, meteu-se a dar conselho ao mulato: o homem não queria confusão,
era somente pau-mandado, só cumpria ordens do novo governo do Ceará. Aí foi que
rosnou alto Vicente-de-dôra: “De quem, seu mané-égua? Repita de novo. Não tenho
medo de governo nenhum. Eu queria ele aqui, com os dois olhão azul caixão de
anjinho”.
- Deixe disso, homem de Deus, apelou
Zezo. - Abra o olho: o novo governo não é mais o teu. Agora é o governo das
mudanças no Ceará.
- Que nada. Ele e merda é a mesma coisa.
Se ele atrepar no poste, pinico ele e você, seu corno.
Por causa do “seu corno”, o esquenta
rabo ajuntou mais gente. Apartaram já não apartando, de tanto os dois se
agarrarem. Por pouco Zezo não matou Vicente-de-dôra.
Depois daquilo, Vicente sempre
reacendia o fogo, como diante da castanhola: “Num esqueci não, De-jesus. Quem
levou num se esquece. Ele tem de provar se sou corno.
Joaquim-de-genésio, na sua vez, chamou
Maria-preta de boca-porca, saco-furado, linguaruda. Debaixo da castanhola da
calçada de Zé-de-júlia, palavrão corria solto e formava ao redor bafafá.
De repente, a voz fanhosa de
Zé-de-júlia a gritar: “Xô, xô, cambada do diabo. Vão pro inferno. Eu tou
adoentado?”. Como se jogasse balde d’água em fogareiro aceso, a confusão parou.
Diante dos briguentos e da multidão de curiosos, Zé-de-júlia, de perna
engessada, agarrado à porta de entrada da sua casa, implorou-lhes deixá-lo em
paz. Havia feito maior esforço para se levantar da cama, pulando feito saci. A
cabeça estava já se espocando de tanta dor e
zoadaria.
Procurou botar ordem na frente de casa:
fossem atazanar em outro lugar. Os marmanjos buscassem encher o tolé de
cachaça. As duas briguentas tratassem de buscar o almoço dele. Pulando numa só
perna, retornou para a rede, gemendo de dor. Diante do alarido de Zé-de-júlia,
todos os presentes, em silêncio, levaram-no a sério, pela primeira vez.
Afinal, o rapaz havia quebrado a perna,
e os parentes lhe deram as costas. Zé-de-júlia morava a sós, no casebre de
barro, de taipa. Esperto limpador de mato, brocador de roça. Quando se
entregava à cachaça, virava a casaca. Quando Zé-de-júlia inventou de comprar a
bicicleta, a gente do Caldas previu chegada do azar para ele. Dito e certo. O
rapaz se esburacou na garrafa, só parou de chutá-la para o bucho depois da
bicicleta se derrapar na areia, quando ele vinha não se sabe de onde.
Levaram-no para hospital de Barbalha, gemendo, bêbado de fazer dó.
Encanaram-lhe a perna no couro limpinho, sem anestesia. Depois, rebolaram-no no
casebre, na proteção do acaso, já que o hospital não tinha dinheiro. Foi por
tudo isso que Vicente-de-dôra amainou a confusão: “Dessa vez, sua De-jesus,
esse aqui, Vicente Gonçalo, filho do Seu Joaquim dos Gonçalos, de lá do sítio
dos Moreiras, dessa vez vou respeitar o dono da casa, o amigo Zé-de-júlia”.
Joaquim-de-genésio se afastou primeiro
e passou o ferrolho na porta de casa. Vicente-de-dôra desceu a ladeira,
gritando imprecações. Os curiosos também se retiraram. Só restaram as duas
mulheres, separadas pela cerca. Cada uma delas fez seu juramento:
- Tu ainda me paga bem caro, De-jesus.
- Pode esperar, Maria-preta. Tua hora
ainda vai chegar.
De dentro de casa, Zé-de-júlia
protestou: “Eita, peste. É satanás? Vão buscar almoço de Zé-de-júlia. E tragam
o café bem adoçado”. Como se obedecessem ao desvalido adoentado, as duas
mulheres silenciaram. Ao recolher peneira, cachimbo e o banquinho, De-jesus
subiu a ladeira da rua, ainda em silêncio. Maria-preta, antes de bater à porta
de casa, ainda olhou para o mundo, como se quisesse comentar algo. E a
castanhola ainda hoje está lá em pé, sem precisar de abaixo-assinado para
retirá-la de lá. Ai de quem se meter passar machado nela.
JN. Dantas de Sousa, Eurides