Meu primeiro contato
com o texto ocorreu bem antes de minha entrada na escolinha de dona Aurora, na
Rua São Paulo, em Juazeiro do Norte (município do Estado do Ceará - Brasil). Lá
em casa, eu e minha irmã ouvíamos, pela minha avó materna, que era cega, Adelina
Dantas de Melo, as histórias baseadas na narrativa popular - tipo de texto que
é fácil de se memorizar, de recontar. Também, uma vez por semana, visitava
nossa casa dona Terta, contadora de histórias, a qual saía à tardezinha, de
bucho cheio, além do dinheirinho no bolso da saia cobrindo os pés.
Eu e minha irmã nos
encantávamos com a Carochinha, com o Barba-Azul, com a Gata Borralheira, com a
Bruxa Malvada, com o Pedro Malas-Artes, com os irmãos João e Maria e com outros
personagens de um mundo longe perto. Ouvíamos. Sentíamos. Até se parecia que eu
via realmente os fatos. Eu, sem saber, dava os primeiros passos no conhecimento
literário, na apropriação da tradição literária.
Foi uma pernambucana,
que se dizia prima de Lampião - Letícia Ferreira dos Santos - empregada em
nossa casa por três anos, na Rua da Conceição - quem se tornou a minha
primeira professora de Literatura. Ademais, foi ela quem me ensinou a
eu ler-solfejar o texto e a eu aprender a ensinar com o texto.
Apaixonei-me por
Letícia. Mesmo trabalhando nas atividades de casa, ou em horas de lazer, Letícia lia-solfejava para
mim narrativas de cordel. No livreto “Estória de Grinauda e Sebastião” (José
Pacheco), no “O Mistério dos Três Anéis” (Delarme Monteiro Silva), na “Estória
da Princesa Rosa” (João Martins de Athayde), no “Os martírios de Genoveva”
(João Martins de Athayde), no “A verdadeira história de Lampeão e Maria Bonita”
(Manuel Pereira Sobrinho), no “História do soldado jogador” (Leandro Gomes de
Barros), essas histórias, além de outras, me satisfaziam ao final. Mas como me
fizeram sofrer aqueles enredos. Ao ouvi-los, eu chegava a chorar. Ela ria de
mim, chamando-me de menino frouxo, ou de garoto açucarado.
No decorrer dos anos,
quantos e quantos personagens eu convivi, no mundo da ficção, ao ler os livros
que papai e mamãe nos presenteavam, Irmãos Grimm, Charles Perrault, Monteiro
Lobato, Luís da Câmara Cascudo… Ao prazeroso contato com a literatura de
tradição oral, eu e minha irmã chegamos a assistir, em meio aos adultos (papai,
mamãe, minha avó e eventuais amigos) às sessões de leitura, em nossa casa, após
o jantar.
Dona Sinhá Augusto,
vivendo seu caritó, e sempre tratando todos de modo educado, era a que mais ia
nos visitar, à noite, após o jantar. Ela lia-solfejava, sentada à mesa da
sala de jantar. Papai sabia ler solfejando. Eu, mamãe (devido a afazeres
da casa), minha irmã, minha avó, Dolores, afilhada de Dona Sinhá, ouvíamos poemas de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu,
Castro Alves, Raimundo Correia (em livros de capa de madrepérola, retirados da
estante de papai). Não faltava, na leitura da noite, um soneto do poeta Olavo
Bilac.
Dona Sinhá
Augusto e papai apresentavam, durante a reunião, livros de prosadores
brasileiros, a fim de serem apreciados, como José de Alencar, Humberto de
Campos, José Lins do Rego, entre outros. E os livros de prosadores
estrangeiros: O Conde de Monte Cristo, Os três mosqueteiros, Os Miseráveis, A
Dama das Camélias, Ana Karenina, O vermelho e o negro… Todos comprados na
livraria do Florentino, na Rua São Pedro. Papai e Dona
Sinhá liam-solfejavam um ou outro capítulo, para depois fazerem
comentários. Aquilo me deixava apreensivo, motivado, para ler o livro todo.
Que prazer senti de
verdade naquele meio-dia, quando papai, chegando da sua mercearia, na Rua São
Pedro, para almoçar e dormir a sua sesta, entrou com braçada de livro. Depois
de ele rasgar o papel de embrulho, estavam diante de mim oito livros, de cerca
de duzentas páginas cada um. Todos eles com quase o mesmo
título: Maravilha do conto francês, português, espanhol, italiano,
alemão, russo, inglês, norte-americano.
Aliás,
o verme da leitura me pegou desde infância: carta de abecê, catecismo
católico, bíblia sagrada, jornal de Fortaleza e de Recife que papai assinava, almanaque, biografia, história de santo católico, capa de long-play e encarte sobre a vida e trabalho de músico erudito e popular, livro didático, papel de bombom,
receita culinária da Tia Benta, revista, livro de Dale Carnegie (Como fazer amigos e influenciar pessoas) e História Universal, do italiano
Cesare Cantu (29 volumes mais o último só de figuras).
Pois sabem o que aconteceu? Descobri que a leitura desempenha função social de manter acesa a chama da memória. E escrever agora me faz recordar quando um padre, musicista e professor de Português, no seminário católico em Carpina-PE, disse-nos durante a sua aula: “Vocês deverão aprender a ensinar com o texto, como o músico ensina com a partitura”.
JN, Dantas de Sousa, Eurides