Vinte horas
e trinta cinco minutos mostrava o relógio de parede quando doutor Gregório
Teles Vilar, advogado de renome no Cariri, havia terminado de ler, em sua
biblioteca, o conto literário de Magalhães de Abreu. Diante dele, via-se o jovem
escritor caririense surpreso na cadeira de balanço, a observar o rosto
carrancudo do doutor. Era como se o sábio advogado já lhe decretasse que seu conto
jamais seria publicado.
De repente,
doutor Gregório levantou o rosto, retirou os óculos e ficou a olhar demorado para
Magalhães de Abreu. Em seguida, de voz pausada, advertiu-lhe: “Não há juiz mais
justo, mais severo, do que o tempo. Faço-lhe esta observação antes de levar seu
conto para publicar no jornaleco da cidade. Ouça, quem diz o que quer ouve o que
não quer. Todavia, cumpra o dever de escritor, mesmo que lhe aconteça o contrário”.
Ao ouvir a
declaração solene do doutor Gregório, presidente do Instituto de Letras do Cariri,
Magalhães de Abreu resolveu seguir-lhe a orientação. No entanto, dias depois partiu
para se encontrar com Tibério Barreto, a fim de publicar seu conto: A
inauguração.
Antecipo
aos leitores que abrandem as críticas a Magalhães de Abreu. O jovem escritor procurou
registrar fatos. Ou esforços culturais de conterrâneos caririenses da última
metade do século XX. Vale ressaltar que, antes do jovem plantar a semente do
conto, percebera uma sensação estranha de não querer ir, como convidado
especial inserido no convite, para a Inauguração da Reforma da Escola Municipal
Doutor Pedro Henrique Bezerra de Filgueiras Sampaio, a mais antiga do município
de… Observava a crescente expectativa dos intelectuais da terra a respeito da
Inauguração da Reforma. Esta seria a mais importante obra pública a ser
apresentada à população, na passagem do Dia do Município.
Três dias
antes da inauguração, veio-lhe uma surpresa: o encontro com Tibério Barreto, proprietário
do A Tribuna. Enquanto Magalhães de Abreu meditava, no banco da praça, se iria
ou não, o jornalista, de modo teatral, insistiu-o para ele se associar à
alegria do prefeito: “Vamos lá, Magalhães. Você engrandece nossa cidade. E quero
que escreva sobre a inauguração, para eu publicar no Tribuna. Ninguém aqui escreve
como você”.
Como Tibério
Barreto era bom ator. E melhor em negociatas: adulava o prefeito para que ele
liberasse o dinheiro da tiragem do seu jornaleco. Só que duas coisas ninguém,
exceto ele e o prefeito, conseguia penetrar: quanto custava uma tiragem e
quando sairia o próximo A Tribuna. Afinal, a impressão dependia menos da
gráfica e mais da boa vontade e do estado de graça de doutor Zuca, prefeito do
Município.
Assim, com
as injeções de incentivo, aplicadas por Tibério, o jovem escritor rendeu-se. No
dia da Inauguração da Reforma da escola, o jornalista chegou cedinho à residência
de Magalhães de Abreu. Mostrou-se paciente em aguardá-lo a engolir o café da
manhã e a vestir o obrigatório paletó. E, sem soltar-lhe o braço, rumaram os
dois a pé, para a Escola.
De tão cedo
que chegaram, encostaram-se no muro da escola a fim de aguardarem a chegada do
prefeito. Pouco a pouco, começou a juntar uma gentinha barulhenta, a falar
alto, com bandeirolas azuis e brancas, que representavam cores da bandeira do
Município. Aproximou-se, ainda, a pequena fanfarra, que contribuiu para puxar
gente e aumentar mais a algazarra.
***
No momento
em que a comitiva de doutor Zuca assomou na esquina, a banda de música da
Prefeitura iniciou o hino municipal. Segundo Tibério Barreto, a gritar ao ouvido de Magalhães de Abreu, em meio à gritaria do povo a correr em direção ao carro do prefeito, o
hino do Município enaltecia ainda mais o prestígio do doutor Zuca.
A multidão
queria porque queria ficar bem perto do prefeito. Num instante, os convidados
especiais abandonaram os carros e gritavam alto, a formarem o círculo humano,
em volta do opala preto da Prefeitura.
Para botar
ordem na confusão, Bastião-do-prefeito ordenou aos seus contratados para iniciarem
o pipocar de fogos de artifício, os quais espalharam estouros e intensa fumaça
pelo céu sem nuvens. Até que enfim conseguiram, pois, estacionar o opala preto
diante do portão da escola.
Os
convidados especiais, sem soltarem os braços cruzados, aguardaram doutor Zuca,
vestido no terno bege, de óculos equilibrando-se no seu nariz adunco, levantar
os dois braços para a multidão. Diante da figura magra e alta, prestadora de
caridade médica, o povo chegou ao delírio, em aplauso e palavras de elogio,
dirigidas ao prefeito. Até apareceu uma vaiazinha curta, para logo um
correligionário do doutor Zuca protestar: “Vem, vagabundo do MDB, tenham
coragem de gritar mais perto da gente”.
Como a
procurar esconder doutor Zuca de mais vaia, o vereador Rochinha empurrou de uma
vez o prefeito para dentro da escola. E os convidados especiais, aos empurrões
e pontapés, conseguiram desvencilhar-se do povaréu, trancando, com esforço, o
portão de ferro.
Já diante
da porta principal da escola, a comitiva deparou-se com três mastros, sem
bandeiras. Alberto Cabral, funcionário municipal e organizador do evento, todo
sorridente, apontou os mastros, com o dedo sujo de graxa: “Excelência, agora é
o início do hasteamento. Venha mais puraqui, excelência. Cuidado excelência,
para não topar no jarro de planta”.
Na presença
do prefeito e da seleta plateia, três moças, escolhidas a dedo, apresentaram-se
de saias curtas e com três bandeiras sobre os braços. A banda municipal, já
perfilada dentro do pátio, aguardava a hora de tocar o Hino Nacional.
Lá fora, o
povo se impacientava. Uns afoitos forçavam o portão principal aos gritos, além
de o esmurrarem. Outros teimavam em se sentar no muro recém-pintado, com as
pernas para o lado de dentro da escola, mesmo contra a vontade dos convidados
especiais.
Enquanto o
bulício se dava do outro lado do muro, as três moças, a passos lentos, se
aproximaram dos três mastros. Em cada rosto delas, percebia-se timidez. Sem
perder tempo, doutor Zuca abriu sorriso malicioso para a maior: quase que ela
derribava a bandeira do Brasil, se não fossem os olhos dos convidados especiais
na direção do desespero de Alberto Cabral, com as mãos à cabeça: “Perdão,
excelência. Mil perdões. Roubaram as cordas das bandeiras, excelência”.
Mal-estar
se instalou entre os convidados especiais, como se um deles houvesse praticado
o furto. Até que, destemidamente, Chico-de-amália, líder do prefeito na Câmara
Municipal, apresentou a ocasional proposta: “Excelência, mande Alberto Cabral
pegar três moleques em cima do
muro”.
Alberto
Cabral, num só grito, reclamou brabo, diante de todos os convidados, a falta de
etiqueta do vereador. Ficou a andar dum lado a outro, sem chegar a lugar
nenhum. Foi preciso que o prefeito apoiasse a proposta do seu líder e ordenasse
Alberto Cabral, de cara amuada, convidar três garotos em cima do muro, para
escalarem os mastros. E, ainda, empurrá-los para o alto, cada um com bandeira
entre os dentes.
Enquanto
Alberto Cabral sofria, os de cima do muro gozavam dele e dos três
garotos, chamando-os de macaco. Daí a pouco, o primeiro menino, que agarrava,
na ponta do mastro, a bandeira do Município, gritou para baixo: “Ondé que enfio
isso?”. E a resposta não demorou lá do muro:
- Na bunda
do prefeito.
Palavras
outras de baixo escalão se espalharam. Sem olhar para doutor Zuca, os
convidados especiais seguraram os risos. Enquanto isso, de camisa suada,
Alberto Cabral, aos gritos, ensinou aos meninos amarrarem as bandeiras em cada
mastro.
***
Ufa! Ainda
bem que se deu início ao ato patriótico. Maestro Jaime-de-mãe-nina e seus
músicos, no pátio da escola, levaram até o fim o Hino Nacional. Após o hino,
Alberto Cabral iniciou o desenlace de fitas na porta de entrada: “Agora,
excelência, puxe a ponta da fita”.
Mais uma
vez doutor Zuca obedeceu-lhe: desenlaçou as fitas. Palmas ecoaram, e o salão
ficou apertadíssimo para acomodar a seleta plateia.
De voz mais
branda, devido à algazarra do povo ficasse pouco distante, Alberto Cabral
anunciou ao prefeito e aos convidados especiais o descerramento do pano amarelo
sobre o retrato do homenageado. De rosto sério, Alberto Cabral solicitou ao
gestor do Município retirar o pano.
Mas que
vexame: pregaram o retrato do homenageado próximo do forro de gesso, não dando
para doutor Zuca alcançá-lo. Mais uma vez o prefeito ordenou Alberto Cabral
adiantar-se na execução da proposta do vereador Zé-da-serraria: conseguir uma
escada.
- Mas excelência.
Escada, excelência...
- Aja
rápido, Alberto Cabral.
Em menos de
dez minutos, Alberto Cabral retornava, pelo meio dos convidados especiais, com
a escada no ombro e as pernas da calça pintadas de carrapicho. Não se
aguentando de tanta humilhação, murmurou entre dentes: “Bando de peste, tão
querendo me derrubar”.
Ainda bem
que, meio sem jeito, doutor Zuca, no alto da escada, retirou o pano. Ocorreu,
então, a saraivada de palmas. Tibério bateu várias fotos. O salão estava
lotado, e o calor era visto na impaciência dos rostos. Somente a calma aparecia
no rosto daquele senhor atrás do vidro do retrato, de óculos grossos, careca e
bigodezinho aparado.
***
Por fim,
aproxima-se a última etapa da Inauguração da Reforma da Escola Municipal Doutor
Pedro Henrique Bezerra de Filgueiras Sampaio (eis o homenageado, pai de doutor
Zuca. Foi prefeito do Município por três mandatos. Construíra a escola, a mais
antiga do Município, em sua primeira gestão).
Por ser a
última etapa da Inauguração da Reforma, peço aos leitores pouco mais de
paciência. Chegou-se ao momento mais aguardado pelos convidados especiais, pelo
senhor prefeito e sua distinta família. Como era de se esperar, Alberto Cabral,
anunciou, de modo cansado, o orador oficial do Município. E ao final da sua apresentação
concluiu: “Para verdadeiro orgulho do nosso altivo município, eis que surge
a figura exemplar do nosso mais estimado professor, pesquisador, historiador,
escritor, jornalista, radialista, cronista, secretário municipal e médico odontólogo:
Doutor Heraldo Barros”.
Forçando
sorriso de modéstia, encurvando-se para os presentes, enquanto caminhava, doutor
Heraldo Barros postou-se à frente da plateia. Lentamente, retirou do bolso do
paletó papel. Ao desdobrá-lo, dava-se para ver três folhas de ofício, todas com o timbre
do Município.
O orador
lançou seu olhar de um lado a outro do salão, como se procurasse algum
desafeto. Após declinar demorada lista de nome de presentes, doutor Heraldo
Barros penetrou, segundo cochicho do convidado especial para o barbudo à minha
frente: havia chegado a esperada obra de eloquência de um cidadão de letras
profundas.
Se algum
leitor, neste momento, quiser desistir de ler o precioso discurso de doutor
Heraldo Barros, o qual eu transcrevi após Tibério me tê-lo disponibilizado, que
posso fazer? Do contrário, inebriemo-nos:
“Transborda
meu parcimonioso coração de incontido júbilo, nesta tarde quase noite,
engalanada sob o pálio sacrossanto da harmonia dos sapientíssimos. Nesta
improvisada tribuna, padecendo abalos sísmicos nos meus alicerces psicológicos,
encontro-me diante desta seletíssima e digníssima plateia, preparada para
embriagar-se deste verbo inflamado, humilde e modesto doutor, professor e
jornalista deste nosso verdejante e febril vale do Cariri, onde a Chapada do
Araripe toca o céu do nosso idolatrado Brasil. Quão árdua tarefa, tão
nobilitante e ingente. Sinto-me supinamente honrado”.
Deu uma
pausa doutor Heraldo Barros para atravessar os olhos pelo salão, como a
procurar adversários. Retornou:
“Com os pés
no chão e os olhos no porvir, que nos afigura risonho e promissor, acodem-me,
em minha paupérrima mente, graves emoções para prestar neste azo justíssima homenagem
póstuma a um preclaro e digníssimo caririense, intelectual de alto coturno,
inteligência lúcida, fulgurante e esplendorosa; alguém que extrapolou as raias
da alacridade: Doutor Pedro Henrique Bezerra de Filgueiras Sampaio”.
Frenéticas
palmas desviaram o olhar de todos para o retrato do homenageado na parede.
Doutor Heraldo Barros aguardou o esfriar das palmas, para prosseguir de peito
cheio:
“Senhoras e
senhores, amáveis conterrâneos, poderíamos caracterizar o nosso caro
homenageado como um intelectual da melhor cepa, beletrista consumado,
verdadeiro poço de sensibilidade, alma transparente, límpida, translúcida, de
ímpar personalidade retilínea e vertical, índole extremamente pacifista, pérola
incrustada nas filigranas de ouro da inteligência caririense, jamais
transgredindo nos deslizes dos prevaricadores dos presentes. Como médico e
político, como um ser de alma pura, cândida e caridosa, conseguiu amealhar
considerabilíssimo respeito e fortuna, tornando-se um terráqueo dotado de dom
divino especial. De uma personalidade granítica, servida por um caráter de
jaça, buscava os pélagos profundos e insondáveis da alma humana. Alma de escol,
até parece que a Eternidade tem inveja das glórias humanas”.
Outra pausa
para beber a água. Não houve palmas. Mesmo assim, passeou os olhos pelo salão.
Molhando o dedo na língua, passou a página:
“Ao final
das minhas simplíssimas e fidelíssimas palavras, do intrínseco do meu coração,
embalado de emoção, assevero-lhes que tracei um pequeno, modesto, carinhoso e
pálido retrato três-por-quatro, assim sem formalidades, sem protocolos, sem
exageros, do meu lídimo conterrâneo que se encontra nessa inapagável
fotografia. Levanto, agora, minha altissonante voz aos céus, para propagar que
Vossa Excelência Doutor Pedro Henrique Bezerra de Filgueiras Sampaio,
verdadeiro cidadão de prenome e nome de renome, o qual, aureolado no altar da
fama, atinge, neste momento esplendoroso, tanto aqui como aí no céu onde se
encontra de verdade, o pórtico do triunfo e os invejáveis píncaros da glória
eterna. Tenho dito”.
Após o
“tenho-dito” de doutor Eraldo Barros, o prefeito doutor Zuca, ensaiou choro,
abraçado pela esposa, familiares e convidados especiais. Logo, muitas palmas
percorreram o salão, além de umas lagriminhas de solidariedade ao prefeito.
Enquanto
isso ocorria, a bateria de fogos de artifício se explodia lá na rua, e a banda,
no pátio da escola, tocava o hino do Município. Alguns, em volta do orador, se
referiam a ele como o poço da sabedoria municipal.
Na
Inauguração da Reforma do estabelecimento educacional, no Dia do Município, doutor
Zuca, sua distinta família e os convidados especiais comeram e beberam com
fartura, longe da gentinha de lá de fora (como dizia Tibério Barreto,
embriagado de uísque, em roda de amigos). Já os músicos tinham se ido, sem
comer, sem beber, sem tocar.
Lá próximo
do forro de gesso, por trás do vidro, o homenzinho careca, de óculos grossos,
bigodezinho aparado, de terno e gravata, só espiava o fim da Inauguração da
Reforma, sem piscar os olhos.
Uma semana após o evento, Tibério Barreto recebeu ordem expressa de não publicar o conto de Magalhães de Abreu. Depois da leitura de doutor Zuca, o dono do jornaleco foi advertido, sob pena de perder a verba da Prefeitura.
JN. Dantas de Sousa, Eurides