A morte do vigia (Dantas de Sousa) - conto

-  Ainda vou voltar, Pernambuco, pra puxar mais.

- Do meu cacimbão, não se tira mais água não. 

Eis o último diálogo de Herculano Matos Sobreira com Manuel Félix, o Pernambuco. Ocorreu quando Herculano Matos, bancário aposentado, passeava numa manhã de quinta-feira de novembro, pelo bairro Limoeiro, em Juazeiro do Norte. Só que, depois de quinze dias daquele casual encontro, ao dirigir-se à casa de Pernambuco, a fim de averiguar mais sobre a história da morte do vigia, ele foi surpreendido pela triste notícia: a filha mais nova de Pernambuco lhe anunciou o falecimento do pai, após crise de enfisema pulmonar, devido ao cigarro.

Mas ainda bem que Herculano Matos guardou na mente, apesar de oitenta e nove anos, a versão do finado Pernambuco, sobre a estranha morte do vigia da usina de algodão. 

Surgiu assim de repente, inesperado, o assunto da morte do vigia. Herculano Matos estava sentado na calçada de sua casa da Rua Santa Clara, ao lado do Santuário do Coração de Jesus, com um amigo de prosa noturna. O médico Francisco Barreto Teles morava por detrás do Santuário e, vez por outra, gostava de ouvir o aposentado. No momento em que o aposentado levantou o fato trágico, doutor Teles, de modo educado e sorrateiro, incentivou Herculano Matos a lhe apresentar o seu testemunho.

- Foi coisa do destino, doutor Teles.

Naquele manhã do seu passeio, pelo bairro do Limoeiro, Herculano Matos ficou em dúvida por qual dos três começos de rua deveria seguir. Segundo ele, naquela época, ele e a esposa Bastinha passavam uns meses em sua chácara, já que seu médico o orientara a ir para lá, devido à sua bronquite crônica.

Após mudar a posição das nádegas, na cadeira de balanço, Herculano Matos explicou o motivo da sua indecisão: a rua da direita o animou a seguir caminho, porém ele avistou um cachorro de raça, deitado debaixo da acácia, e uma mulher de preto varrendo a calçada. Já a rua da esquerda se mostrava sem ninguém, todavia só havia muros e cercas, por isso ficou medroso prosseguir por ela. Pelo rádio, todo santo dia, ele ouvia tragédias. Então, decidiu seguir pela rua do meio.

Durante o trajeto, distraiu-se ao observar o aumento da cidade. Alegrou-se de ver as três principais igrejas grandes, os edifícios construidos há pouco tempo.

- Onde que eu estava mesmo, doutor Teles?

- Na rua do meio, Herculano.

Na rua em que ele havia escolhido, não se via ninguém. Mas, lá para o fim da rua, avistou duas pessoas, a trabalhar numa construção. O de boné preto amassava barro, e o de chapéu de palha estava na escada, rebocando a parede da frente da casa. Um menino andava, dum lado para outro da rua de areia, com um carrinho de madeira.

Enquanto Herculano Matos passava diante da construção, assustou-se com a voz do ancião alvo, de cabelo branco. Encontrava-se o ancião debaixo do pé de algaroba, de sombra rala, sentado na cadeira de tiras de plástico. Até o convidou para ele se achegar, e que iria buscar um cafezinho para o novo amigo. 

Para não deixar Herculano Matos encompridar a conversa, como era seu costume, doutor Teles alertou-o sobre a morte do vigia.  Depressa, ele lhe pediu calma, para se situar na conversa. E logo explicou ao doutor que resolvera aceitar o café e a cadeira ao lado do ancião, debaixo da algaroba.

O ancião entrou na casa do meio, gritando para a filha para que ela colocasse a marmita no fogo, fizesse café para um amigo que, passando na estrada, tinha se alegrado do negrinho. Enquanto Herculano Matos aguardava  a volta do ancião, ficou a observar o trabalho do pedreiro no rebocar a parede da frente da casa da direita. O servente estava ocupado a preparar a massa.

Daí a pouco, o ex-bancário se assustou, já que o ancião saiu de dentro da casa, de voz rouca e com seu dedo indicador empenado na direção dele e tirou brincadeira com ele, ao se referir que só estava vivo graças ao café.

- Onde é que eu estava mesmo, doutor Teles?

- Na casa do ancião, após ter bebido o café.

O bancário aposentado agradeceu ao médico, elogiando-lhe o juízo sadio. Continuou, então, a conversa. Perguntou ele ao ancião sobre a reforma das três casas. Só depois de  acender o cigarro brabo, deixar fumaça subir pelo rosto e descruzar as pernas, o ancião apontou, com o dedo de bico-de-papagaio, as casinhas. Explicou a Herculano Matos que a da esquerda era da Francisquinha, filha mais velha, de marido trabalhador, e só tiveram duas filhas. A do meio era a da Raimundinha, mãe-solteira, com menino nos cinco anos, de marido assassinado, e ela ficou a morar mais ele. A da casa do acabamento era da Mariquinha, caçula, se preparando pra casar. Finalizou ao se lamentar de que esperava Mariquinha lhe dar gosto, para não agir como Raimundinha, que se enrabichou pelo famoso finado Pernambuco.

Antes de Herculano Matos dar prosseguimento à narração, doutor Teles lhe perguntou quem era o tal "famoso finado Pernambuco". Nervoso no falar, Herculano Matos respondeu-lhe que o ancião, proprietário das três casinhas, era conhecido por Pernambuco, mas seu nome de nascimento era Manuel Félix da Conceição. Já o famoso finado, que o conheciam por Pernambuco, foi policial, metido a valentão e, tempo depois, mataram-no.

- Mas, Herculano, adiantou-se doutor Teles, o finado soldado Pernambuco foi quem matou o vigia?

A conversa foi interrompida pela empregada de Herculano Matos,  trazendo café. Beberam-no. Após o bancário aposentado ajeitar as nádegas, repetiu seu refrão: "Onde que eu estava mesmo, doutor Teles?".

- Quem matou o vigia, Herculano?

 Na verdade, o finado soldado Pernambuco pregou dois pregos em Manuel Félix da Conceição. Primeiro por causa da sua filha Raimundinha. O segundo, no tempo da morte do vigia da usina de algodão. 

Essa tragédia tomou de conta da política de Juazeiro do Norte. Herculano revelou que o vigia morrera enganado. Na época do crime, Manuel Félix, trabalhava de prenseiro, na usina de algodão. Daí começou a escutar que estava surgindo, no escritório da usina, bilhetes anônimos, escritos à mão. De manhã, em começo de expediente, aparecia um sobre o birô do escritório. O desconhecido pedia aumento de salário, até ameaçou tocar fogo na usina.

Tiveram de contratar detetive. E, no dia em que Pernambuco, o Manuel Félix, dormia na usina, após o trabalho da noite, vieram lhe apertar, inclusive o finado soldado Pernambuco. Manuel Félix, com raiva, explodiu, reclamando que não era vigia para botar sentido no entra-e-sai do povo à noite.

- E quem mesmo, Herculano, matou o vigia?

Na pressa de descobrir quem havia matado o vigia, doutor Teles recebeu uma repreensão do aposentado, para ele ser mais paciente. Em seguida, Herculano Matos  anunciou que acharam o vigia todo inchado, com a boca queimada. No dia do velório do vigia, a nora do defunto lhe contou este segredo: o sogro foi morto enganado. Tudo porque o marido dela, que era o filho mais velho do vigia, e com raiva do pai, botou-se para ser o autor dos bilhetes sem nome. Acabou, por infelicidade, fazendo tirar a vida do pobre pai, depois do vigia sofrer mais que Jesus.

Na insistência de doutor Teles, a fim de saber mais algo, Pernambuco, o Manuel Félix da Conceição, concluiu assim: dentro da panela daquele angu, teve muita gente. Até político de oposição foi suspeito. A notícia correu o Brasil todo. E pra quem mais quiser cafungar, no meu cacimbão não se tira mais água não. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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