Padre João morava na cidadezinha caririense, há vinte e cinco anos. Homem calmo e profundo devoto de Nossa Senhora da Conceição. Nascera no município de Jardim, estudou teologia na capital cearense e, logo ordenado, recebeu a missão de assumir a pequena paróquia daquela cidadezinha pacata e cheirando à seca. O povo confiava-lhe segredos. Comentavam que ele chegara a curar pessoas do lugar. E o vigário não se desapartava dos paroquianos.
A única vez que precisou viajar,
pouco antes da morte da mãe, em Jardim, chorou. A multidão cercava o fusca, correndo a pé
pela estrada. Mas ele voltou para seus fiéis e para a leitura do breviário.
Residia na casa paroquial mais a preta Bia. Durante a tarde, desenfastiava-se
na espreguiçosa, na calçada alta, relatando histórias de santos católicos, ou
divertindo-se com as conversas do povo. Aquilo chegava a quebrar a indiferença
religiosa de muitos da cidadezinha, levando-os à Matriz, principalmente na
missa dominical, às nove da manhã.
Na manhã do primeiro
domingo da Quaresma, após a missa, foi ter com padre João, ainda se despindo na
sacristia, Esmeralda Arrais. Há dias que ela rondava a casa do vigário,
procurando melhor momento para desafogar dos seios mágoas da vida. De modo
especial, pedir-lhe consentimento para a grande decisão.
Retorcendo os dedos,
Esmeralda Arrais esperou o padre retirar os paramentos. Sacristão Abdias, de
rabo-de-olho, mostrando desprezo para a desregrada no ambiente sagrado, não se
conteve: deixou para arrumar a sacristia mais tarde. Duas filhas-de-maria, que
se atreveram a acompanhar o vigário, deram meia-volta e saíram pela porta
principal da igreja, resmungando. Ficaram os dois sozinhos: o padre,
sentado no confessionário aberto, e Esmeralda Arrais, no banco da frente:
- Padre João, eu estou
cansada da vida de
puta.
O vigário se benzeu rápido
para logo aconselhá-la: “Que na igreja não proferisse, em hora nenhuma, palavra
insana”. E padre João apontou para Nossa Senhora da Conceição, lá no altar-mor.
Esmeralda Arrais baixou a cabeça e a conversa:
- Quero a licença do
senhor preu me casar.
Ficou aguardando, com os olhos voltados para o chão, a vontade do vigário. Mas não engoliu o silêncio dele. Retornou a falar ao vigário que ela se mostrava arrependida de ter se jogado na lama. Desejava viver como mulher direita. Não ajuntou sorte desde infância. A família desprevenida, sem quase água no pote, cresceu enfiada, desde o abrir do sol, na roça dia todo, todo dia, ficando longe da carta-de-abecê, dos números.
Só mais tarde sentiu o desgosto do pai ao saber do malfeito dela. E pior Esmeralda Arrais passou ao padre: teve de guardar na mente a maldita expulsão de casa. A mãe, aos prantos, abraçando-a na porta da rua, e o pai lhe agourando que ela iria bangolar pelo mundo. Por isso, ela se findou rebolando pelos cabarés de Juazeiro do Norte. E resumiu todo seu desabafo: "Mas nunca, padre João, macho gozou na minha cara".
Padre João franziu a testa na expressão rasca dela: "Não exagere, minha filha. Tenha prudência na língua". Remexendo os botões sobre o preto da batina, o vigário meditou: como aquela mulher, havia inúmeras espalhadas pelo mundo. Nosso Senhor Jesus Cristo também conviveu com filhas de Eva, vencidas pela serpente.
- Mas foi uma
promessa que fiz, padre João.
- Promessa, filha? Não
se brinca com promessa.
Após confessar, em prantos, ao
padre João, a promessa feita a Nossa Senhora da Conceição,
Esmeralda Arrais sorriu aliviada. Enxugou as lágrimas na barra do vestido
florido e deteve-se nos olhos do padre. A conversa tomou outro rumo. Padre
João, de sorriso tímido, enquanto caminhava os olhos pela igreja, declarou-lhe
que todas as pessoas deveriam mudar de vida, buscando andar de modo correto,
sem querer enganar os outros.
- Padre João conhece meu
noivo. É aquele todo aleijadinho.
- Já sei, minha
filha. Mas vocês não vão ter filhos não.
- Não carece ter mais não, padre
João.
- Tolice,
filha. Casamento sem sexo... Satanás atenta. A carne é
fraca. .
Esmeralda Arrais não gostou da desculpa insossa do padre. Logo procurou argumento para convencê-lo: havia marcado a data do casamento com Raimundo. Sentia muita pena do infeliz, a morar mais a mãe viúva. Já se aboletara na casa dos dois. Afinal, tinha descoberto o seu paradeiro, mesmo com aquele aleijão de nascença, com sessenta e oito, e ela com vinte e nove anos. Durante sua andada de asa quebrada, jurou a ele amor sério. Raimundo lhe prometera, lá no cabaré de Juazeiro do Norte, lhe dar de um tudo. Mas ele só lhe pediu uma coisa: viverem juntos para sempre.
- Padre João parece tá
botando pimenta em nossa comida.
- Minha filha, veja bem. Dê um tempo pra pensar melhor.
Levantando-se do
banco, Esmeralda Arrais cismou de encarar o da batina preta. Segurando-se nas
palavras, explicou ao vigário que tinha de sair da vida de esquerda. Encontrara
o seu ombro amigo, ou até mesmo a sua cruz.
- Eu pedi foi com fé em Nossa Senhora, padre. E ela me atendeu.
No entanto, padre João se mostrava irredutível. Alertou-lhe que casamento não era brincadeira, porém sacramento importante da Mãe Igreja. A cada frase do padre, querendo lhe empurrar na cabeça esquisitice, Esmeralda Arrais desconfiou não ganhar no jogo das palavras dum homem mais sábio que ela. Tentou, então, jogar mais uma cartada: "Já me cansei, padre João, deu ter fudido com tanto macho".
Diante daquele tamanho disparate, padre João avermelhou-se. Andando de mãos para trás, atordoado, não tentando olhar para o alto, para a estátua da Imaculada, deu, ali mesmo, por encerrada a conversa.
- Padre, me diga, que merda eu caguei?
- Chega, chega.
Agora, vá, vá.
Passando o lenço no rosto suado, o sacerdote dirigiu-se ao altar-mor, caindo de joelhos. De olhos fechados. implorava a Mãe de Jesus perdão para aquela desregrada, tentando se aproveitar dum aleijado. Na cidade, já batiam nos dentes que a prostituta queria mesmo era dar chave-de-gancho no Raimundo Ferreira, como também na pobre mãe viúva herdeira de pouca terra. A coitada da mãe do Raimundo chegou ainda a lhe declarar, tomada pelo choro, a absurda pretensão do filho cabeça-de-vento, todo se enlambuzado de cabaré. O besta ia por ir naquele lugar, já que, pelo jeito, só se servia das mãos. Agora, grudado na vadia Esmeralda, querendo se atirar de cabeça e corpo inteiro para a doida varrida, só provocava redemoinho dentro de casa.
- Me escute, padre
João. Fui puta, mas batizada. Jurei a Nossa Senhora não dá mais nem pela frente, nem por trás.
- Minha Nossa Senhora.
Minha filha, segure sua língua. Vá, vá.
- É assim, padre João.
É assim que o senhor me trata?
Vendo-se desprezada, Esmeralda sentiu-se como se estivesse no salão do cabaré. Atirou-se para o religioso de punho cerrado, gritando que se amancebaria, com ou sem religião, pouco se importando com padre. Dando rabiçaca para o sacerdote, rebolando-se na saia comprida, caminhou pelo corredor de bancos até a porta principal. Mas, antes de fechá-la, voltou-se para o vigário, ainda ajoelhado diante do altar-mor. Desabafou-se: "Pegue suas leis, padre João, e soque elas no seu rabo.
Padre João tapou os
ouvidos ao escutar a pornografia de Esmeralda Arrais. Bolhas de eco
ficaram a vagar no silêncio da Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.