Dia e noite, noite e dia, entrando para seis meses, Zé-preto
não parava de se embriagar. Antes, o negro só puxava fogo. Depois da morte do
pai, Raimundo-cotó, a birita e o biriba apossaram-se dele. No Caldas, distrito
de Barbalha, voava conversa de que Zé-preto se castigava daquele jeito porque
inventou de botar olho virado para doutor Luna, desde o dia em que o médico não
socorrera o pai moribundo.
Quando alguém procurava lhe tirar da cabeça a
ilusão, ao lhe afirmar que o médico na noite da tristeza se encontrava de plantão
no hospital de Barbalha, zangado Zé-preto destemperava-se. Para ele, doutor Luna
cometera ato de maldade, falta de Deus, tudo porque sua família era pobre, de
pele escura.
Também Zé-preto se deu para andar malcriado com a
vizinhança. Virado da bebida, o negro abriu confusão até com o barrigudo Seu Ó.
Foi preciso Seu Ó, mesmo com a pança brilhosa quase sem lhe deixar andar, alcançar-lhe
a bordoada no peito, derrubando-o por sobre o balcão de madeira da mercearia de
Eliseu.
Por causa dessas imprudências de Zé-preto, doutor Luna,
ao avistá-lo se esforçar para subir pesada ladeira de rua, escondeu o rosto com
o romance Fogo Morto, que o lia na espreguiçosa, na calçada alta de casa.
Ficou, porém, brechando de canto de olho a passagem do rapaz.
Aquela figura o comovia: cabeça pequena, redonda e
careca, óculos de lente fundo-de-garrafa, pescoço escondido, corcunda o
emborcando, ananicado, perna mais fina que outra, devido à paralisia infantil.
Andava quase como um de quatro pés. Quando menino, a fraqueza o fizera pouco
andar. Por isso é que puxava fôlego na subida da ladeira.
Diante da amurada de Maria-de-joca, Zé-preto parou.
Proseou mais a mulher, gesticulou, até riu um riso latido. Aliviado do cansaço,
retornou a subida. Pé lá, pé cá, carregando a corcunda, aproximou-se da calçada
de doutor Luna.
Ao vê-lo, Bilinga, na porta de casa, traçou em si mesma dois sinais-da-cruz, avisando ao médico: "Ave-maria, doutor Luna. Zé-preto melado, o capeta vem no rastro". Mas Zé-preto nem lhe deu ouvido. Abaixou a cabeça, forçou a perna direita. E ao vê-lo se distanciar, Bilinga atiçou o doutor: "Ouviu o que o pé de cana atirou pro senhor, doutor Luna? Nem se emenda. Devia esse macaco enfiar o rabo no fiofó e não mexer com quem tem pano pra manga".
- Desaforado, igual ao pai. Deixe pra lá, Bilinga. Faz
que nem ouviu.
Voltou-se doutor Luna para o romance. Não ouvira a
malcriação do rapaz. Nem deveria ter dado asa a Bilinga. De vez em quando,
ela se envolvia em briga no trecho. Alguém da rua até já dissera: “Bilinga é
pau de dar em doido. Nem bata língua pra ela”.
Ainda bem que Bilinga resolveu ir para casa, e o cabo da vassoura debaixo do braço. No silêncio, doutor Luna acomodou-se na espreguiçosa, para seguir o enredo de Fogo Morto. Concentrava-se no capítulo em que Mestre Amaro, igual a lobisomem, andando pelas noites… Nem havia passado meia-hora, e Zé-preto, socando o ar com o punho esquerdo fechado em direção ao médico, esbravejava: "Desaforado igual ao pai, uma ova! Igual ao pai, uma ova". Repetia Zé-preto, em voz alta, a frase, e andando de lado a outro da rua, com a camisa no ombro esquerdo.
Logo, amontoou gente. Donana abaixou a latomia do rádio, para se encostar à calçada alta do doutor. Achegaram Maria-de-joca, Maria-de-chagas, Lena-de-dondon, Tica-de-leodoro, com filho escanchado no quarto, e a leva-e-traz Mundinha. Parado no meio da rua, Antônio-de-rosa, foice debaixo do sovaco e o cigarro apagado na boca. E Zé-de-dôra, perna no gesso, se aproximando feito saci. Até um molecote da Rua-de-cima, de cócoras, no muro da frente, de baladeira a rodar nos dedos, espiava Zé-preto ainda com a mesma frase: "Desaforado igual ao pai, uma ova. Igual ao pai, uma ova".
Antônio-de-Rosa, de foice para o alto, procurou acalmar
o rapaz. Pedia-lhe educação para com o doutor Luna.
- Desaforado igual ao pai, uma ova. Igual ao pai,
uma ova.
- Chega de ova, rapaz. - repreendeu-o
Antônio-de-rosa.
- Ninguém mimpata. Desaforado igual ao pai, uma ova.
Igual ao pai, uma ova.
Encostado ao pé de jambo, Zé-de-dôra se meteu para explicar a Antônio-de-rosa o significado de ova. Segundo ele, ova era a mesma coisa de “de jeito nenhum”. Logo foi rebatido por Zé-preto: "Uma ova é uma ova, otário. Desaforado igual ao pai, uma ova. Igual ao pai, uma ova".
Ao aproximar-se da espreguiçosa, Raimundo-biloto aconselhou doutor Luna a se guarnecer de paciência com o desbocado. Zé-preto o rebateu: "Desbocado é tu, sacana. Desaforado igual ao pai, uma ova. Igual ao pai, uma ova".
Sem ninguém esperar, Zé-preto puxou da mão do menino a baladeira. De olhos esbugalhados dentro dos óculos, o negro apontou a baladeira armada de pedra para doutor Luna. Ficou a repetir: "Desaforado igual ao pai, uma ova. Igual ao pai, uma ova".
Antônio-de-rosa, com a foice levantada, decidiu defender o médico. As cinco mulheres, amontoadas no canto do muro da casa de Bilinga, sem piscar olhos, aguardavam decisão de Zé-preto. Depressa o menino se meteu entre as folhas do jambo. Até Zé-de-dôra, de perna só, escondeu-se atrás da árvore. Na espreguiçosa, doutor Luna, marcando a página do livro com o indicador, observava imóvel o filho de Raimundo-cotó, com a baladeira estendida para ele, se esgoelando: “Desaforado igual ao pai, uma ova. Vamo, diga de novo. Diga, diga quem é o desaforado igual ao pai. Igual ao pai, uma ova. Igual ao pai uma ova”.
De repente, caiu Zé-preto estatelado nas pedras da rua. Alguém jogara uma pedra, acertando-o acima da orelha esquerda. Rápido o sangue se espalhou pela cabeça dele. Aos latidos, o negro clamava a todos para não morrer.
Num instante, Donana acudiu-o com a bacia d’água e o pano. Antônio-de-rosa enterrou a foice no caule do pé de jambo, para auxiliar o calmo doutor Luna, tentando parar o sangramento do rapaz. Só se ouvia o converseiro alto em volta do enfermo sobre quem havia feito a maldade. Por fim, Raimundo-biloto e Antônio-de-rosa carregaram Zé-preto nos braços ladeira acima. As mulheres e o menino da baladeira os acompanharam, anunciando a tragédia a quem visse pela frente.
A pouco, a tranquilidade se acomodou de novo na rua. De olhos fechados na espreguiçosa, doutor Luna refletia sobre o desagradável acidente. Mas foi impedido pela voz gasguita de Bilinga, com sarcasmo: "Foi até bom, pro Zé-preto conhecer seu lugar, doutor Luna".
O médico não entendeu logo o que Bilinga lhe dissera. Mas lhe veio à mente: por que ela não estava entre as mulheres no momento da confusão? E resolveu conversa com a vizinha, ao lhe sugerir que Zé-preto não teria coragem de lhe acertar alguma pedra. Ao que Bilinga lhe retrucou: "Mas essa velha aqui teve, doutor Luna. Dali, do meu quintal, e eu em cima do meu pé de pequi".
Não se conteve doutor Luna na espreguiçosa. Levantou-se de vez e, de rosto grave, repreendeu-lhe a covardia. Bilinga, porém, nem se intimidou. De sorriso irônico na boca murcha, quase sem dente, explicou-lhe que havia acertado conta com Zé-preto. Quem mandou o negro, mês atrás, lhe chamar de fuxiqueira? Quase que seu marido tinha se esbofelado com ele na bodega de Eliseu. Agora, estava ela de alma lavada. E finalizou, depois da gaitada, com as duas presas à vista: "Gentinha dessa marca, doutor Luna, lição como essa ainda é pouco". E terminou Bilinga de falar na porta de casa, ainda repetindo por duas vezes a última frase. Depois de passar o ferrolho, cantarolou alto um estribilho de cântico de missa, repetindo-o como de costume.
Sem vontade de mais ler, derreou-se o médico na espreguiçosa, para botar a cabeça em ordem. Tinha quase certeza de que o desaforado igual ao pai saíra da boca de Bilinga para os ouvidos da família de Zé-preto. No entanto, antes de chegar à conclusão, doutor Luna foi interrompido por alguém a lhe tocar no ombro. Ao abrir os olhos, o doutor se deparou com Mundinha, assustada. De fala apressada, com a mão quase a cobrir a própria boca, a mulher anunciou ao doutor que tudo aquilo só havia acontecido porque doutor Luna chamara Zé-preto de malcriado, desaforado igual ao pai. Tinha ouvido da boca da mãe do rapaz, bradando de raiva, na porta de casa. A velha mãe de Zé-preto dava socos no ar enquanto gritava pra todo o Caldas ouvir: "A vez de Zé-preto inda vai chegar. Mais depressa que rastro de cobra".
JN. Dantas de Sousa, Eurides.