Doidos na cozinha (Dantas de Sousa) - crônica

Acordei no domingo, às cinco da manhã, com a barulhenta conversa na cozinha da casa vizinha. Observei logo que era a voz da anciã viúva, que chegara de Campos Sales, cidade do interior cearense. Ela havia deixado o filho caçula e a nora tomarem de conta da sua casa, enquanto estivesse na casa do filho mais velho, uma vez que ela fora se tratar de uma depressão.

Os dias em que o casal passou na casa não foram tão bons. Eles possuíam dois filhos - dois garotos gritadores, chorões, briguentos. De quando em quando, uma surra eles levavam, e os pais se esforçavam para fazerem calar.

Voltemos ao fato da manhã. Antes, eu até me alegrei quando uns moradores da rua me anunciaram que a anciã estava retornando para a sua casa.  Só que me angustiei na chegada da anciã. Naquela manhã de domingo, a voz rouca e alta da anciã atravessava a parede da cozinha dela e se espalhava pelo quarto onde eu permanecia:

- Agora eu é que sou a doida. Mas doida é você, Luzia. Sempre dizia pra esse meu filho que tu, Luzia, era uma doida. Mas Antônio, doido por esse teu negócio, agarrou-se com tu, doida de pedra, e agora defende tu. Luzia, tu de tão doida botou na cabeça dele ter esses dois doidinhos no mundo. Pobre desses meus dois netos.

- Mas espia quem me chama de doida. - não se conteve a nora. - Logo Dona Dilma, uma doida que todo mundo da rua sabe que é doida. Devia mais ter vergonha de ser doida e não fazer vergonha a nós.

- Eu sabia. - aumentou a voz Dona Dilma. - Eu estava adivinhando: quando eu voltasse pra minha casa, ia debater com tu doida. Doida da cabeça e doida do fundo.

- Me respeite, Dona Dilma. Não me venha me dizer que meu fundo é doido. Seu filho até tentou, mas eu não sou doida não.  

O filho da anciã entrou na conversa:

- Mãe, mãe, pare de se meter em nossa vida. Aqui estava tudo calmo, mas a senhora veio mais doida ainda.

- Vá se lascar, seu peste, gritou dona Dilma. - De todos meus filhos, você é o único doido, porque se casou com essa doida desembestada.

- Vá pro inferno, velha doida varrida, berrou a nora, batendo com a panela num móvel.

Antônio não gostou da grosseria da esposa. Voltou-se, então, para ela:

- Quem vai pro inferno é a sua mãe, Luzia. Aquela velha doida, que largou seu pai por nada. Como é que você, Luzia, trata minha mãe como doida? Respeite pelo menos a doidice dela.

Foi aí que um dos meninos se meteu na conversa, com essa súbita interpretação:

- Pai, na escola, um colega me disse que eu era doido porque eu fazia doidice de adoidado. Agora eu sei que sou doido, porque tenho vó doida, mãe doida e o senhor que diz cada doidice quando tá bebo caindo.

A mãe apoiou o filho:

- Muito bem, Mateuzinho. Esse teu pai, desde que me casei com ele, aprendeu a beber com seu avô, doido por cachaça, e essa sua avó Dilma, que não ficava atrás. Ela ficava doida quando não bebia a lapada de raizada. E hoje sou a doida porque aprendi a beber depois que botei o pé nessa casa.  Agora, tem uma coisa, eles vão aprender com uma doida e como essa doida vai fazer daqui em diante.

Não sei quem foi que alteou o som do rádio tão alto que fiquei a escutar o programa policial, com o locutor a comentar a notícia de um assassinato de uma mulher pelo marido. De repente, parou o rádio, e ouvi a anciã gritar rouca:

- Eita, meu Deus. Esse mundo está ficando cada vez mais doido. É dentro de casa, é do lado de fora. O doido do satanás vai deixar todo mundo doido. Mas eu quero ver é ele me deixar doida. Ele morre, mas não me deixa.

Depois dessas palavras, a casa ficou muda. Nem as crianças falaram mais.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.


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