Além da FM (Dantas de Sousa) - conto

Duas amigas se reencontraram, na segunda-feira, no frequentado salão do cabeleireiro Jô Nice. Cristiane Rocha, alvoroçada e de língua solta, já entrou no recinto a ironizar pela falta de freguesas no ambiente. Trazia ela consigo três grandes sacolas de plástico, com estampas de lojas do centro comercial de Juazeiro do Norte. Desbocada, insuflou a amiga Selma Machado, em silêncio, atenta ao espelho, enquanto Jô Nice ajeitava-lhe o cabelo:

- Tu aqui, Selma, gastando? Não para de estourar o dinheiro dele.

Ao ouvir a crítica ferina da gorda, Jô Nice, sem parar o secador de cabelo, espiou de canto de olho para a indiscreta freguesa, que jogara as três sacolas sobre o pacote encoberto com papel vermelho brilhoso. Depois se esparramou no sofá, de pernas abertas e calcinha róseo aparecendo.

Mantendo-se em silêncio, Jô Nice deixou de mexer no cabelo de Selma, a fim de abaixar o som da FM. Mas tinha certeza de que a freguesa não iria ficar calada diante da atitude intempestiva de Cristiane. Não demorou, Selma Machado não se conteve.

- Você se cuide, sua desmiolada. Se quebrar esse presente, que me custou o olho da cara, pode preparar o cartão dele. Lascada como tu, que nem manteiga tinha pra passar em pão seco,  agora quer se esnobar.    

Esse tapa bem dado, fez Jô Nice soltar a sua gargalhada fina, como faca em amolador. Para esfriar o ambiente, esquentado pela discussão das freguesas, aumentou o volume do ar-condicionado. Conseguiu Jô Nice, dessa maneira, calar as duas mulheres.

Mas durou por poucos segundos. Cristiane resolveu indiretamente cutucar a amiga. Revelou ao cabeleireiro que já estava abusada de usar ar-condicionado em casa. Foi mais longe: Mário, o marido, era viciado em ar-condicionado. Ele possuía no consultório, no carro dele e no dela, no quarto de dormir, na casa toda. Até no banheiro da suíte deles. E se escorregou nesta indiscrição: foi por causa do ar-condicionado que a mulher dele o largou. Também, Mário preferia dormir com ar-condicionado e logo pegava no sono, deixando-a sozinha e triste.  

No salão, o gritinho de Jô Nice arrasou: "Ai, meu Cristo". Já Selma não ficou por baixo e atirou sua seta. Revelou que o seu Oduvaldo não precisava dessas friezas. Ele dispensava até ventilador. Preferia o quarto pegando fogo, para os dois tomarem banho de instante em instante, depois de tanto se amarem.     

As duas amigas não perceberam o suspiro profundo de Jô Nice. Ainda bem, porque se elas soubessem o motivo daquele suspirar, com certeza estrangulariam o cabeleireiro.

A verdade é que tanto o ginecologista Mário Camargo Pereira quanto o Oduvaldo Santos Araruna, dono de um restaurante famoso no Cariri, todos dois eram assíduos clientes de Jô Nice.

Naquele instante, veio à lembrança do cabeleireiro aquilo que jamais as duas freguesas poderiam saber. Disfarçou logo, pedindo-lhes licença para ir rapidamente ao banheiro e beber o café da garrafa térmica. Mas as recordações remexeram-se dentro de si: ele agradava aos dois com educação de profissional. Agradou-os, repetidas vezes, em práticas luxuriosas. Disfarçando-se ao retornar ao trabalho, Jô Nice aconselhou as duas freguesas:

- Vocês, amores mio, não deixem de curtir suas nices com seus beibes. Não se angustiem com frieza nem com quentura de seus beibes. Tem tanta gente, neste mundo nice, que sente vontade de querer a quentura ou a frieza de seus beibes.

- Mário é médico de mulher, levantou a voz Selma, mas só tem eu.

- E Oduvaldo tem raiva de rapariga e viado.

Jô Nice estrondou o salão com estridente gargalhada. Dessa vez, ele engrossou a voz, completando seu ponto de vista para as duas:

- Jô nem está aí, amores mio. Só sei que cada um é livre pra todo nice na vida.

Ao ver as duas amigas de boca calada, Jô Nice procurou distraí-las. Iniciou, então, uma história que ouvira de uma freguesa no salão.

Aconteceu na festa de aniversário, na chácara de um casal amigo. No meio da badalação, rolou de tudo. Foi incrível e nice. Um marido de uma foi comprar, com o marido de outra, bebida. Uma mulher, deixando o marido na festa, saiu com a amiga para comprar tira-gosto.

Foi aí que rolou tremenda confusão. Primeiro se deu o roubo: dois sons, de dois carros, foram roubados dentro do motel. Interessante que tudo foi descoberto na delegacia. Um som estava no carro dos dois que foram comprar bebida. O outro som se achava no carro das duas que foram comprar tira-gosto. Daí se uniram os dois casais para não ser a tragédia divulgada nas emissoras de rádio e até na televisão. E terminou Jô Nice a sua fofoca assim: “Amores mio, foi uma transa  nice. Além da FM.

- É fim de mundo, Selma.

- Isso mesmo, Cristiana.

Esperando por Cristiana se ajeitar na cadeira a fim de começara a mexer no cabelo dela, Jô Nice ensinou as duas que todos e todas são filhos e filhas de Adão e de Eva. Imitam as belezas nice de Sodoma, Babilônia, Roma e outros lugares luxuriantes no mundo. Todos imitam as novelas, os filmes. E concluiu: desde que mundo é mundo, suas tolinhas, todos têm parte com Deus e parte com Satanás. Tem parte com Deus ou com Satanás.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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