Ao lado de Gasolina (Dantas de Sousa) - crônica

Nunca passou pela minha cabeça me ver sentado no batente da porta de uma casa da Rua Padre Cícero, lado da sombra, ao lado de Gasolina. A mulher se mostrava calma, de pernas cruzadas, com a saia cobrindo-as. Ainda trazia o cabelo curto e os lábios finos.

Eu conhecia Gasolina desde garoto. Era ela conhecida, em Juazeiro do Norte, como mais uma louca da cidade. Perambulava pelas ruas, vestida de roupa gasta. Conversava sozinha. Trazia debaixo do sovaco a lata já usada de leite em pó. E pedia esmola com a mão direita estirada. Ainda, o mesmo pedido: “Jesus na frente, e paz na guia. Me dê, me dê uma esmola”.

Diziam os mais velhos,  no  meu  tempo  de  garoto: “Gasolina quando se enfeza saiam da frente”. Tudo porque a louca não gostava de ouvir “perdoe. Por isso, ao me lembrar do aviso dos mais velhos, evitei negar-lhe a esmola. E pela primeira vez eu me achei bem perto de Gasolina, sem ter medo dela. Fiquei a lhe observar o cabelo grisalho e rugas a riscar-lhe o rosto. Afugentara-se-lhe, não de todo, a beleza negra. Restavam-lhe marcas de anciã sofrida.

-  Minha esmola,  senhor. - implorou-me  Gasolina, de mão estendida

Ainda  bem  que  uma  mulher,  saindo  da  casa  da  frente, entregou-lhe dois pães e o copo de plástico cheio de café. Contentou-se Gasolina com o lanche. Na primeira mordida, quase engoliu o primeiro pão. Ao servir-se do café, quase engoliu o copo.

- Minhas tripas, senhor, disse-me Gasolina, de boca cheia, roncam que nem trem nos trilhos.

Sorri para Gasolina, devido à comparação. Em seguida lhe perguntei se ela havia visto padre Cícero ainda vivo. De pronto, ela protestou:

- Ainda não esqueci minha esmola.   

Prometi-lhe que daria a esmola. Diante disso, ela se animou a me responder: 

- Meu padre não morreu. Ele fechou os olhos pra abrir eles no paraíso.

Esperei-a beber último gole de café, jogar o copo no asfalto, limpar a boca com as mãos. Voltando-se para mim, declarou-me:    

- Pude avistar meu padre já no fim, se emborcando.  Apareceu na janela da Rua São José, tardezinha, pra bençoar a multidão.

Num impulso, Gasolina segurou meu braço. Passou a me ensinar esta oração: “Com Deus, eu me deito, com Deus, eu me levanto. Com a força e o poder do Divino Espírito Santo.” Ao ter a certeza de que eu consegui decorá-la, contentou-se. Sorriu, deu três tapinhas com a mão magra em minha cabeça. E me declarou que a pessoa que rezasse a oração, antes de se levantar e de se deitar, não passaria pelo fogo do inferno, pisaria de mansinho o purgatório e não ficaria no escuro do limbo.

- Muito forte essa oração, meu senhor. A minha mãe me disse que foi meu padre que ensinou aos romeiros. Me dê a minha esmola.

Admirado diante do ardor religioso de Gasolina, entreguei-lhe cinco reais. A minha caridade deixou-a de sorriso largo. Passou ela a me elogiar. No entanto, antes da nossa despedida, especulei-lhe se havia padre Cícero falado a história de não passar pelo inferno, pisar de mansinho o purgatório e não ficar no escuro do limbo. Para que eu fui falar isso? Dum pulo, com o indicador dirigido ao meu rosto, Gasolina bradou com raiva:

- Todo mundo anda virado de cabeça pra baixo. Essa gente joga tudo no lombo de meu padre, como se meu padre fosse um infeliz dum jumento de carga. 

Gasolina nem mais quis conversa comigo. Seguiu pela Rua Padre Cícero a praguejar, como de costume.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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