Arrufos de reisados (Dantas de Sousa) crônica

 

Diante da estátua do padre Cícero, em frente à igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na cidade de Juazeiro do Norte, na tarde do dia 22 de dezembro de 1988, um grupo de reisado dançava, acompanhado de sua banda cabaçal, formada por dois pífaros, dois violões, zabumba, tarol e par de pratos. Diante da banda - seis homens do grupo, vestidos de colete vermelho, saias emolduradas com tiras de pano vermelhas e azuis e de turbantes vermelhos feito cone, com três espelhos redondos em volta - encenavam a dança folclórica. Enquanto dançavam ritmados, estalavam espadas uma na outra. Ao lado da banda, a princesinha, de vestido de cetim azul-anil a cobrir-lhe os pés, de coroa prateada à cabeça, permanecia imóvel de costa para a estátua do padre Cícero. Além desses, havia no grupo de reisado dois mateus - de rostos pintados de preto, chapéus vermelhos em forma de cone, roupas de cangaceiro. Querendo atrair atenção da plateia de romeiros, os mateus lhes davam gargalhada, soltavam-lhes gracejo. Ora tocavam pandeiros, ora corriam atrás de jovens, ora pediam dinheiro aos homens. Já a catirina - homem de saia de saco de agave e rosto pintado de preto - corria, com seu chicote a estalar, a fim de amedrontar, sobretudo jovens. Assim, o reisado chamava mais gente para perto da estátua do padre Cícero, de olhos azuis, dentro do nicho.

Dali a pouco, do meio da multidão, o menino sem camisa, aos gritos, anunciou que se aproximava outro grupo de reisado. Eles vinham destemidos - quatro guerreiros á frente do grupo, com espadas ao ombro. A princesinha, de coroa dourada à cabeça e vestido longo de cetim verde, acompanhavam-lhes. Seus músicos já tocavam eufóricos. E dois mateus mais a catirina mexiam com o povo.

Como a obedecer  aos  gritos  do  menino,  os  romeiros, que assistiam a coreografia do primeiro reisado,  formaram rápido corredor para o segundo reisado se aproximar da estátua. Esse reisado também queria se apresentar para o padre Cícero. Assim, entraram disposto no corredor, batucando e dançando com energia. Entretanto, um senhor do primeiro reisado, o qual ainda apresentava seu grupo, alertou aos espectadores, de voz troante: “Chegou nossa vez, meus amigos e amigas, da gente tomar a princesa deles”.  

Deu-se, então, um tipo de combate medieval diante do padre Cícero e da multidão de chapéus, todos silenciosos. Ouvia-se o traque-traque das espadas, o baticum das duas bandas, e o cantar gritante de cada reisado. As duas princesinhas impassíveis, à espera do desfecho. Enquanto a luta se aferventava, quatros mateus, por detrás da atenta plateia, faziam macaquices, ao sabor do batuque de seus pandeiros. Esbaldavam-se em golada de cachaça, na boca da garrafa. As duas catirinas já não estavam presentes.

Sem a plateia esperar, a confusão estourou. Iniciou-se o corre-corre. Gritaria desvairada se espalhou. Tudo porque um dos guerreiros, talvez pelo esquentar da apresentação e do estímulo alcóolico, soltou a sua espada na testa do rival que caiu sem se ferir. Mesmo assim, todos os das espadas partiram para a batalha real. Os tocadores de pífaros também entraram na briga. Somente as duas princesas não se meteram, E só parou a confusão dos dois grupos quando um romeiro vestido de branco, de chapéu de palha, trovejou:

- Epa, epa, epa. Não estão vendo meu padrinho lá em cima, espiando essa indisposição.

No segundo grito do romeiro, de voz mais alta, os dois reisados, como  se fosse algo ensaiado, caíram de joelhos em silêncio, diante da estátua do padre Cícero. De cabeças abaixadas, batiam lábios. Duas mulheres colocaram as princesinhas, uma ao lado da outra, diante dos dois reisados. Logo, o senhor, com jeitão de líder, levantou-se para chamar os dois grupos à reconciliação.

Interessante que os dois reisados lhe obedeceram. Deram-se as mãos, abraçaram-se. Por fim, pediram, com mãos estendidas, a bênção do padre Cícero. Em silêncio, dois reisados seguiram caminho pelo estreito início da Rua Santa Luzia. À frente, as princesinhas a conversarem alegres. Os guerreiros, logo atrás delas, com espadas ao ombro, conversando baixo entre si. Os músicos das bandas cabaçais a conversarem de voz baixa. Bem, bem atrás, os quatro mateus e as duas catirinas, embriagados, perturbavam, com gaiatices, romeiros, barraqueiros e até dois policiais. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides. 

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