Juvenal Farias Novais e Constância Vieira Novais, dois funcionários da prefeitura de Juazeiro do Norte, moraram muitos anos na Rua São Jorge, entre Rua da Conceição e Santa Luzia, numa casa estreita, cor amarelo-ovo, de porta e janela de madeira, pintadas de azul-escuro. Ainda me lembro do número da casa: 423. Ouvi de vizinhos deles comentarem que casa onde a soma dos números termina em nove só traz ela aos seus moradores desgosto e azar.
Enquanto moramos próximo ao casal, ouvia papai os chamando de “casal rapando panela”. Após termos mudado de casa, e eu passei a estudar em Recife, não soubemos mais nenhuma notícia deles. Entretanto, como tudo tem seu dia e nada é oculto para sempre, mamãe me disse, num período de férias da faculdade, que Juvenal e Constância encontraram uma botija. Achei isso tão esquisito, e nem mamãe conseguiu me explicar.
Passaram-se anos. Após formado em Medicina, retornei para minha cidade natal, como ginecologista. Certa noite, ao chegar à festa de casamento de um amigo do tempo de ginásio, encontrei o advogado Paulo Romão Parente sozinho na porta do bufê. Já que poucos haviam chegado ao local da comemoração, resolvemos entrar. Sentamos numa mesa longe do centro da festa. Ficamos a conversar, entre goles de cerveja, fatos do passado. Paulo Romão sempre foi bom de papo. Sentia prazer de ser farrista e raparigueiro.
De repente, ele parou de me contar uma piada imoral, para me alertar que o casal de noivos estava chegando à festa. A multidão começou a encher o ambiente. Música, barulho de carros, fogos, gritos, saudações, palmas e alvoroço tomaram de conta do bufê. No meio daquela agitação, Paulo Romão bateu no meu ombro com força e me alertou para eu olhar para quem vinha em nossa direção. Abaixou a voz para me avisar: "Aquele de paletó azul-marinho é Júlio Morais, atacadista. Eu sou advogado dele".
Quando Júlio Morais parou para cumprimentar um grupo de amigos na mesa, Paulo Romão, deu-me as coordenadas. Em pé, apertando meu braço, ordenou: "Comporte-se educado com ele e com a mulher que vem com ele". E antes de lhe indagar sobre o seu "comporte-se educado", explicou-me ser a mulher, de mão dada com o comerciante. a segunda esposa. Chamava-se Iracema, mais nova do que Júlio Morais vinte e um anos. Mostrava-se vaidosa, excêntrica, conversadeira, brincalhona e apreciadora de novidades. E em pé, Paulo Romão se preparou para agradar aos dois, sobretudo a Iracema, com discrição.
Daí, de conversa em conversa, Paulo Romão tocou num assunto que me empolgou. Para nos mostrar como advogado depara-se com surpresas, ele anunciou ter conhecido um casal de aposentados que adquiriram uma botija de ouro. Iracema, num instante, agoniou-se para saber da novidade. Júlio Morais não conseguiu acalmá-la e pediu com educação para seu advogado aplacar a curiosidade da sua mulher.
Constância, esposa do Juvenal, que morou na casa 423 da Rua São Jorge - iniciou a sua história o advogado - foi ela quem me repassou, com detalhes a chegada da surpreendente idosa em sua casa. Na calçada de sombra, ela a encontrou, ao abrir a porta da rua. Ela estava deitada com a cabeça sobre o saco, a dormir. Chamou-a e, sem resposta, bateu-lhe no rosto para ver se ela estava viva. Precisou apertar-lhe o nariz para a idosa se despertar.
Ao vê-la calma, Constância se apresentou à desconhecida. Conseguiu levá-la para dentro de
casa, sentando-a na cadeira de balanço. Às pressas, perguntou-lhe de onde ela
era, se ela queria tomar banho, se ela estava com fome… E resolveu correr para
dentro de casa, depois de fechar de chave a porta da rua.
Voltou depressa,
trazendo copo e garrafa de água. A mulher bebeu a água
da garrafa. Constância lhe ofereceu comida. Mas ela lhe agradeceu,
já que havia almoçado numa casa da Rua do Cruzeiro, na qual se habituara almoçar
por lá.
Constância ficou a admirar a desconhecida: de olhos castanhos, cabelos lisos e pretos. Apesar de idosa, quase não se via rugas nela, a não ser uma em cada canto dos olhos. Mesmo com ar de gente maltratada, a dona da casa via nela origem fidalga. Atreveu-se a convidá-la a se banhar. Prometeu lhe dar roupa para ela se vestir. Ainda bem que a idosa aceitou o banho. Mas quando a idosa saiu do banheiro, vestia-se no vestido que trouxera no saco. Vestido de dama. Deixou-a mais nova. Florido, com fita dourada na cintura. A emoção de Constância aumentou que até convidou-a para ela se sentar no sofá da sala.
A partir daí, a idosa
deu-se a conhecer. De fala educada, identificou-se como Maria Aparecida
Fortunata Pereira de Melo. Nascida em Arapiraca, município de Alagoas. Era
filha única. Após a morte dos pais, resolveu andar pelo mundo. Não quis se
casar, apesar de vários pretendentes. Terminara ensino Normal, porém não
quisera a profissão de ensinar nem de continuar estudo. Possuía espírito nômade
de cigana. Viajou por várias cidades brasileiras. Conheceu cinco países da
América do Sul. Até que desejou conhecer Juazeiro do Norte.
No segundo mês da chegada
a Juazeiro do Norte, decidiu demorar pouco mais na cidade. Dormia em pousada e comia na rua. Não quis trabalhar, preferiu, segundo ela, receber o
que o povo lhe dava. No entanto, ao entrar nos seus sessenta e nove anos, com saúde se debilitando, pensava arranjar guarida para desfrutar seus
últimos dias.
Enquanto Maria Aparecida
Fortunata abria o passado, Constância se enrolou nas teias da desconfiança. A
visita inesperada se mostrava evasiva. Ainda bem que Juvenal, o marido dela, abriu a
porta de casa e se deparou com a idosa. Constância se apressou em apresentá-la
ao marido. E se adiantou entusiasmada para a idosa. Anunciou a ela que na residência só moravam duas pessoas: ela e o marido.
Eram aposentados, não tiveram filhos. Para surpresa de Juvenal,
Constância ofereceu moradia à Fortunata. E Maria Aparecida acabou concordando
em morar com o casal.
Quando os vizinhos souberam da novidade, aperrearam-se para entrar na casa de Constância. Até que a porta lhes foi aberta, porém com restrições de visitantes por dia. Dali em diante, a casa ficou animada. Fortunata tinha assunto para conversar com qualquer pessoa. Só que o período de visitas durou cinco meses. Fortunata contraiu pneumonia. Daí surgiram problemas para o casal. Dias depois, o médico resolveu levá-la para o hospital. Decidida a ir ao hospital, Fortunata pediu ao casal que lhe trouxesse um advogado da confiança dos dois. Bem rápido, o casal foi atrás de doutor Paulo Romão Parente, amigo advogado há anos do casal. Na verdade, Fortunata parecia sentir aproximar-se a hora de se despedir do mundo.
Antes de uma semana internada, Fortunata implorou aos três para tirá-la do hospital e a levasse para o seu quarto onde ela estava morando. Era desejo seu morrer perto de suas coisas. De tanto insistir, o hospital lhe deu alta. O casal preparou o quarto, com providencial ajuda da enfermeira. Não foi em vão, portanto, que o casal gastou suas poucas economias nos derradeiros instantes de Fortunata.
Na véspera do dia de São
José, Fortunata amanheceu disposta. Após o café da manhã, parecia que ela se
recuperava. Mas era o indício da morte chegando-lhe sutil. Antes do almoço, ela
rogou à Constância para lhe trazer rápido doutor Paulo Romão. E, ao recebê-lo sentada
em sua cama, Fortunata pediu à Constância retirar a chave do guarda-roupa, a
qual se achava debaixo do colchão. Fortunata nunca deixou o casal saber o que
continha dentro do móvel.
Juvenal e Paulo Romão abriram o guarda-roupa e entregaram à Fortunata um saco de pano. Com olhos a lacrimejarem, a doente agarrou-se ao saco. Retirou de dentro dele o envelope amarelo. Dentro dele, havia a sacola de plástico preta. A chorar copiosamente, Fortunata dirigiu-se ao advogado. Havia resolvido doar a Juvenal e Constância o que ela trazia consigo há anos. Lentamente, ao entregar cada objeto para o advogado, explicou-lhe o que era: dois cartões de bancos; joias penhoradas em Juazeiro do Norte; investimento em ouro depositado em banco do município; e duas escrituras em nome dela, ou seja, dois terrenos, de herança dos pais, com endereço em Arapiraca.
- Creiam, findou Paulo Romão.- Há ganhador de botija. Botija de ouro!
Mas para que o advogado acabou a história com esse comentário. Assistimos à reação de Iracema. Depois de soltar suspiro profundo, ela jogou para fora a angústia: "Como eu queria ter achado uma botija. Devia ter morado num quatro, dois, três".
De pronto, a leviana recebeu o contra-ataque grotesco de Júlio Morais: "Você merece, infeliz, ser trocada por uma terceira". O comerciante levantou-a de modo grotesco. Sem despedir, o casal se dirigiu para a porta da rua do bufê. Júlio Morais bem à frente, e a chorosa Iracema, segurando o sapato alto, a cambalear atrás dele.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.