Cascas de banana (Dantas de Sousa) - conto



Nunca pensei de ter viajado - dizia eu a Seu Piau - num ônibus da linha Juazeiro do Norte-Crato, em meio a bando de loucos. A confusão se deu em início de manhã de segunda-feira de maio, entre dois passageiros. Um havia pisado o balde em que o outro conduzia ovos de capoeira, para vender na feira do Crato.

Embora o passageiro quebrara quase todos os ovos, ele se desculpou nervoso, devido ao ônibus entupido de gente. Até lhe prometeu pagá-los. Mesmo assim, o pau cantou. Envolveu-se na confusão a maioria dos passageiros. Somente se esfriou a bagunça quando um senhor, dizendo-se sargento da polícia pernambucana, puxou o revólver, botando moral no ambiente. Não mais se ouviu nem assobio, a não ser o rádio do motorista, transmitindo o programa de poesia matuta e canções de forró. 

Pois pensei que o fato, entre os dois feirantes, iria agradar a Seu Piau. Lembro-me de que, enquanto lhe narrava entusiasmado o episódio, sequer ele fez menção de sorrir. Ao término, levantando-se da cadeira de balanço, convidou-me para irmos beber mais um pouco do café do santo lá na cozinha. Nessa noite acabávamos de assistir, junto a sua família, parente e convidado, a reza - Renovação do Coração de Jesus (uma tradicional comemoração católica, solene e anual, em lares de Juazeiro do Norte). Após a reza e a comida do santo, a maioria dos convidados já havia ido para suas casas.

De verdade, eu gostava de assistir àquela celebração anual na residência de Seu Piau, além do nosso bate-papo em sua calçada da Rua Santa Clara, após a reza. Era o terceiro ano em que eu ia à casa daquele humilde fabricante de alpercatas de rabicho e assíduo frequentador da feira do Crato. Na anterior Renovação do Coração de Jesus, Seu Piau havia me dito, em sua calçada, que ele, desde garoto, em todas segundas-feiras, entrava ano e saía ano, botava banca na feira do Crato. Foi puxado pelo pai, seu mestre no ofício das alpercatas. Ele ia em cima da carroceria do misto (caminhão que carregava gente e coisas), sobre caixões de madeira, ainda de madrugada. Depois da morte do pai, Seu Piau, já casado, continuou na mesma caminhada, até o dia em que Deus lhe dissesse que não mais.

- Já vi muito ocorrido de lá pra cá, meu doutor. - disse-me Seu Piau, logo que sentamos à mesa da cozinha. Segurando a asa do bule, para se servir, explicou-me: - Eu sei de história de todo tipo, que até dão pra se fazer livro.

Enquanto eu me deliciava de bolo de puba com café, Seu Piau, sentado em frente a mim, passou a me contar, com aquela voz fanhosa, por causa do cigarro, a história, dentro do ônibus da linha Crato-Juazeiro do Norte. Em manhã de sol aparecendo forte, às cinco horas, ele seguia no primeiro ônibus da escala do dia. O veículo, pela Avenida Padre Cícero, forçava andar de tão pesado que os pneus traseiros pareciam querer secar. Mais adiante, na parada em frente da fábrica de refrigerante de caju, o motorista precisou, a fim de pará-lo, ranger bem mais alto os freios.

Logo que as duas bandas da porta traseira do coletivo se abriram, a mulher gorda, que acabara de chegar às carreiras, com três sacolas penduradas no braço esquerdo e de bolsa a tiracolo, meteu-se no meio do grupo de dez pessoas. Queria ela, do jeito que desse, entrar. Gritava insistente: "Sai do mei, sai do mei, bando de égua".

Enquanto a gordona enfezada subia os batentes da porta, empurrava os passageiros de dentro e dava coices nos que se esforçavam para entrar. Formou-se o esquenta-cabeça que até o motorista, aperreando-se lá na direção, quase desconcertou a maquininha de fechar as duas bandas da porta. Apesar das reclamações dos passageiros, agoniados com tanta gente antes e depois da catraca, o ônibus se arrastou pelo asfalto da Avenida Padre Cícero. Por sua vez, aos pontapés e empurrões, não se importando com rastro de confusão atrás de si, a mulher conseguiu encostar-se à catraca, com o dedo indicador estirado para o nariz do cobrador: "Comé? A passagem subiu de novo? Eita que infelicidade. Tudo subindo que nem merda n’água. E o governo mentindo, que tá tudo congelado. Só se for a venta dele".

O cobrador, rapazinho de olhos assustados por detrás dos óculos, em silêncio empurrou a gaveta do dinheiro para dentro e, com dedo indicador, apontou para a tabela pregada atrás dele, no vidro da janela. A enfezada não gostou de ser tratada daquele jeito. Mais uma vez arranjou maneira de desafiar os nervos do cobrador "Avie logo, seu molenga" - e jogou sobre a gaveta a nota novinha de dez reais. - "Tire a minha já, senão eu vou pular por cima dessa porcaria".

 Em silêncio, enquanto o cobrador passava-lhe o troco, iniciou-se o zunzum de revolta. Um passageiro ousado, de bermuda e chapéu de palha, procurou defender o funcionário da empresa, aconselhando a mulher a usar-se de bons modos. Ela, no instante, arrematou-lhe na cara, com dedo em riste: "Num me chame de dona-maria não. E tem mais: só porque veste calça pode me humilhar no mei do povo? Venha, atrevidim".

Do meio do corredor, outro passageiro, de boné preto e camisa do Vasco, fedendo a sovaco, ensaiou apoio à passageira: "Muito bem, dona. Pobre também é gente". Mas a mulher discordou dele:  "Epa, seu desmiolado. Vire sua boca pro inferno. Pobre é o diabo dos que vive de venta atolada no fundo dos comedorzão de voto".         

Calou-se a mulher para arrumar as sacolas entre as pernas. Ninguém mostrou coragem de lhe interpelar algo. Alguns a olhavam disfarçadamente, esperando-a retornar a falar. Ainda bem que o vento, entrando pelas janelas, afastava um pouco o fedor humano e o das galinhas. Enquanto o ônibus acabava de atravessar a extrema do Juazeiro com o Crato, começando a pegar força para enfrentar a subida, avistava-se, do lado direito, a estátua branca do Padre Cícero, no serrote do Horto. Também se via o verde dos dois municípios, arrodeado pela Chapada do Araripe verde-azul. 

- Os gabiru da política, recomeçou a mulher, olhando a estrada. - Eles são monte de enrolão. Na frente da gente, uns anjim. Mas, por trás, uns biriba. Conheço um lá perto deu mais sujo que nem poleiro de galinha. Cinco eleição pra vereador e num  perde não. No comecim, se abanca na cadeira, fica do contra, enquanto não rói a corda. Basta o prefeito mostrar a ponta do dinheiro que o desgraçado abre as perna. Aí a gente tem é que meter a mão no bolso desses merda e, no dia de dar o voto, a gente soca o voto no mal-cheiroso abre-e-fecha deles.

O disparate fez mudar o clima de nervosismo dentro do coletivo. Gargalhadas e palavrões tomaram de conta do ônibus. Cada qual jogava gracejo ou revolta contra os políticos. Lá do seu lugar, de óculos escuros e com a calça levantada até os joelhos, aparecendo meias brancas e pelo das pernas, o motorista, com cara de ninguém-me-chegue-perto, espiando pelo retrovisor interno, empurrou o pé no freio. Parou o ônibus e a bagunça no ponto próximo ao antigo posto da polícia rodoviária. O passageiro que desceu rindo, com a cesta de siriguela à cabeça, protestou: “Eita muiézinha dos seiscento diabo”.

Na bucha, a enfezada lhe respondeu: "Pois venha aqui, enxerido, preu lhe mostrar seiscento e um”. E o coletivo tomou caminho com a enfezada, por cima do passageiro da janela, e a sua metade para fora do ônibus, ainda a gritar disparates para o da siriguela. Mas, ao ver os passageiros mangando dela, retornou para o interior do carro, de rosto vermelho de raiva, em silêncio. Passou a ajeitar os embrulhos entre as pernas. Depois, agarrou-se à bolsa e ao cano da bancada. Mas, dali a pouco, retornou a se lamuriar: "Outro dia, achavam que eu era uma besta puraí. Num é que um caga-mole se encostou detrás deu, dentro de uma carroça dessa aqui. Fui aguentando, pensando que o caga-mole tava com seriedade. Quando senti o bicho dele engrossando no meu traseiro... Oxente, sapequei a tesoura pra pegar nos ovos dele. Ele teve sorte. A tesoura ainda rasgou a camisa dele, E eu gritei: tome, infeliz ferrabrás. Na outra vez, minha tesoura arranca tua linguiça".

- Qué isso, dona, intrometeu-se o estudante de farda branco-azul. - Essa  sua  loucura vai  te levar pra trás das grades.

Outros passageiros resmungaram, concordando com o rapaz. A mulher não gostou e, de repente, estirou a tesoura em direção ao estudante: "Pois venha, frangote. Nem homem de farda, um bicho mais traiçoeiro que satanás, manda em eu. Fui junta com um policial. Ele quis me dominar, mas fiz ele ter medo do sete palmo". Ainda em alta voz, explicou aos passageiros que o policial inventou de levantar a mão para ela. Fez primeira, fez  segunda… Na terceira, chamou o covarde à catraca. Sua tesoura santa quase que o levou para morar no cemitério. Mas ele se desembestou no meio-do-mundo. Lembrando-se do estudante, dirigiu-lhe mais outra ameaça: "Pois parta daí, seu frangote, tou doida pra pinicar você do meu jeito".  

Ninguém quis mais falar nada, dentro do ônibus. Ficaram acuados diante da fera. Não vendo reação, a mulher guardou a tesoura e cantarolou baixo um luiz-gonzaga. Silêncio pairou no coletivo apertado de gente, baldes, balaios, caixotes e galinhas. Embora todas as janelas abertas, mau cheiro, ou melhor, fedor de podre dominava o ambiente. Só o que dava alegria era o verde das canas, o verde-azul da Chapada do Araripe e o azul do céu sem nuvem.

- Esse nosso país aqui é de lascar. - rasgou a língua a mulher, de pé, com as sacolas entre as pernas. Explicou que pobre e bicho não prestam pra nada. E pediu-lhe a atenção para o que iria provar: "Na última eleição, a gente botou o bonitão na Brasília. Chaleirou até nosso santo frei Damião. Mas depois de se aboletar na cadeira de rei, começou a se soltar". E concluiu: "Sabe o que foi que safadão fez com minha poupança?". Logo um gaiato berrou para a mulher: “Diga não, dona. Aqui dentro tem mulher direita”. Outro passageiro atiçou o fogo: “Diga, dona, diga como ficou o seu abre-e-fecha”. Um terceiro escangalhou: "O teu abre-e-fecha mal-cheirosim, dona".

Gargalhadas explodiram no coletivo. E a mulher, completamente endiabrada, passou a empurrar os passageiros, forçando passagem para o início do veículo. De toda a maneira, ela queria porque queria descobrir os que tinham tirado sarro da sua cara. Aos gritos, com veia do pescoço quase a estourar, insistia em repetir que não era mulher-da-vida, nem viada, nem sapatão. E os piadistas mostrassem as caras para espatifá-las. Conduzindo a tesoura aberta, desafiou: "Desabotoe, fio-de-quenga".

O cobrador em pé, agarrado à gaveta, parecia que iam se explodir os seus olhos por detrás dos óculos. Assistia à balbúrdia e, ao mesmo tempo, gritava para a mulher: “Calma, dona-maria. Tenha calma, dona-maria”. Ela logo partiu para cima dele: "Calma o quê, cego-aderaldo. Se meta à besta. Faço em você igual que se faz num assum-preto: furo seus dois fundo-de-garrafa".

Diante da brutalidade da enfezada para com o cobrador, uns passageiros se revoltaram. Começaram a praguejar contra a louca. Outros se meteram a favor dela. O bate-boca aumentou mais ainda, e ditos pornográficos borbulharam no ar do ônibus. Era gente se jogando por cima de gente, galinhas batendo asas e cocoricando sem parar, cotoveladas e mais cotoveladas, frutas rolando pelo corredor, a enfezada teimando a empurrar os passageiros, e com a tesoura aberta desafiava os seus oponentes. Ainda bem que o motorista encostou-se no ponto em frente da pracinha, um pouco distante do quartel da polícia militar do Crato. Mas tão logo a porta se abriu, a enfezada, vermelha que nem tomate, arrotando palavrões, apressou-se para descer os batentes do ônibus. Por azar, estendeu-se na calçada, com as sacolas voando, a tesoura mais adiante, e uma das sandálias indo parar na lama do meio-fio. Na ligeireza de gata em perigo, ela rodopiou pela calçada. Bem rápido se levantou. Antes de recolher seus pertences, voltou-se de vez para o coletivo e dando socos no ar, praguejou: "Seus bando de banana. Vocês tudim são um bando de banana".               

- E uma casca  de banana caindo do lado de fora. - atirou de imediato o mesmo estudante, com a cabeça para fora da janela. Dois colegas dele completou o deboche: Casca-de-banana. Casca-de-banana. 

Diante daquela humilhação para com a feirante, todos os feirantes se uniram. Até mesmo Seu Piau se aliou aos seus colegas de feira. Decidiram dar boa lição nos três estudantes. Tornou-se necessário dois policiais, correndo lá do quartel, de cassetetes às mãos, a fim de apaziguarem os cascas de banana, sem deixarem o motorista cumprir o primeiro horário. Na manhã de segunda-feira se fez urgente a vinda de mais policiais, mais quatro, para que o ônibus seguisse caminho, com o vidro da frente quase todo trincado, sem deixar o motorista ver o rumo. Isso foi devido à pedra de calçamento, tamanho de coco babaçu, jogada pela enfezada, no descuido dos policiais.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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