Coragem pro que der e vier (Dantas de Sousa) - conto

Falar de Francisco José da Silva, de sua coragem, do seu modo de viver, não é fácil para quem deseja imitá-lo. Ele foi um sujeito que se acostumou a dizer Tenho coragem pro que der e vier. Alguém, não se sabe quem foi, pôs-lhe o apelido de Cavalão, por causa desse seu bordão.

Os amigos mangavam desse seu Tenho coragem pro que der e vier. Familiares, porém, explicavam ao povo que aquilo era somente cacoete dele, desde adolescente. Mas para quem não o conheceu proponho apresentar-lhe alguns fatos da sua vida, já que ele havia se tornado um popular cidadão dum município do Cariri cearense.

Numa vez em que dois homens correram para acudir uma moça a gritar, ao se afogar no açude, eles se depararam com Cavalão à beira d’água. E, ao ser convocado para salvá-la, Cavalão desculpou-se ao dizer-lhes que precisava defecar no matagal. Depois desse fato, Cavalão, no bar de Joaquim, após beber algumas doses de cachaça, dramatizou para os amigos aquela sua caganeira. E terminou sua fala com o dito habitual Tenho coragem pro que der e vier.

Como na vida ninguém conhece alguém com profundidade, Cavalão apareceu pela cidade com a notícia descabida: resolvera se casar. Logo a história do seu casamento inesperado correu de boca em boca, numa impressionante rapidez. O boato se esticou pela cidade: quem era a escolhida de Cavalão? Onde ela morava? Era moça, mulher separada, divorciada, viúva, idosa, rica? Recrudesceu-se a fofoca até ao ponto de um comerciante abastado da cidade escolher dois adolescentes para rastrearem, em segredo, os passos de Cavalão. 

Interessante foi que nunca viram Cavalão a namorar, nem a noivar, como a tradição social o exige. Muitos se atreveram a lhe indagar a data do casamento. Cavalão só repetia a costumeira frase Tenho coragem pro que der e vier. E, assim, se tornou dificultoso para entender qual era mesmo o seu tipo de coragem. Alguns passaram a desconfiar do que Cavalão afirmava. Era mais de boca do que de ação.

Quando Maria das Dores engravidou, alguns da cidade, sobretudo comerciantes do centro e do Mercado Central, alimentaram fantasias, tais como se Cavalão seduzira Maria das Dores. E, ao passar o tempo, as pilhérias viraram cinza. Primeiro pela própria família de Maria das Dores que tratou de explicar aos boateiros que Cavalão jamais bulira com Maria das Dores. No entanto os debochadores de plantão, semearam novas sementes na cidade. Diziam que o rapaz não era corajoso, porém molenga e mentiroso. E, assim, terminou Maria das Dores a parir, sem saberem quem era o pai da criança. Mesmo assim, ressurgiu a pólvora acesa: o verdadeiro sedutor de Maria das Dores e o pai da criança era mesmo Cavalão. Lá se atreveu Cavalão a negar, com seu bordão no final: Tenho coragem pro que der e vier.    

Numa noite de sábado, de novena do padroeiro do Município, surgiu um fato para Cavalão mostrar sua coragem. No pátio ao lado da Matriz, onde se havia instalado o parque de diversão, o palco das apresentações, as barracas de comidas e mercadorias, inesperadamente o locutor do leilão parou de cantar as pedras do bingo, para anunciar que alguém, com letra parecida de mulher, arrematou o peru assado para o rapaz que Tem coragem pro que der e vier. Ligeiro o tal presente espantou os frequentadores. Concordavam ser de modo claro o Cavalão. O locutor ainda afirmou ter recebido o bilhete por um garoto. No outro dia, ainda o comentário era um só. E Cavalão cheio de pose repetia: Tenho coragem pro que der e vier.

Um daqueles jovens escolhidos para rastrear Cavalão, na afoiteza de seus dezesseis para dezessete anos, impressionou-se pelo nosso personagem principal e pela tamanha importância que o povo lhe dava. E como lhe deram autoridade para descobrir a futura esposa de Cavalão, chegou a perder aulas só para investigá-lo. Já nem obedecia aos conselhos dos pais, para que ele parasse com a teimosia.

Numa madrugada chuvosa de começo de abril, o adolescente se encontrava na esquina da farmácia de Seu Vicente Gomes, debaixo da marquise, para se resguardar da chuva grossa. Sem esperar, avistou Cavalão saindo da casa de Seu Antônio do chevrolet. Mas, como o caminhão não se achava estacionado diante da casa, aumentou a desconfiança do jovem de que algo estranho acontecia. O adolescente entrou em dúvida tamanha: será que Cavalão teria, de verdade, coragem de trair Seu Antônio do chevrolet?

Não teve o jovem a coragem de contar a alguma pessoa da cidade o que presenciara. Botou na cabeça de descobrir sozinho o enigma. Amiudou a solitária investigação. Quanto mais os pais lhe pediam para ele parar a investigação mais crescia nele a vontade de especular Cavalão.

Como ele se espantou na tarde se indo, ao assistir, no meio de um matagal, Cavalão fazendo sexo com a formosa burra de Antonico-do-padre. Quão foi espantoso para o jovem: os olhos de Cavalão arregalados, arfando e gritando como louco, a tentar chegar ao orgasmo. Equilibrava-se Cavalão no toco de árvore. Por fim, caiu no barro duro, debaixo da mangueira, enquanto a burra saiu pulando dum lado a outro, como se parecesse feliz. Resolveu o adolescente contar as duas últimas presepadas de Cavalão para o vigário da igreja de São José, padre Amaro. Não teve coragem, sentiu-se envergonhado, espantado. Sofreu. Padre Amaro iria acreditar em sua história? Acabou desistindo de ir ao vigário.

Enquanto o povo da cidade ouvia Cavalão repetir a sua mesma frase, porém ninguém não conseguia descobrir a razão daquela sua mania de esnobar coragem. Mas a insistência do jovem lhe incentivava a ir mais adiante. E o destino o fez se aproximar de Maria das Dores, que era sua tia, irmã de seu pai. Por incrível que pareça, terminaram os dois fazendo sexo na beira do açude. Na hora do orgasmo, ouviu a tia falar bem claro, ao seu ouvido: “Ai se fosse o meu Cavalão”.

Após terminarem de se abraçar, o jovem lhe perguntou por que ela falara o nome de Cavalão, ao seu ouvido. Maria das Dores, de modo desconfiado, confessou-lhe ter sido Francisquinho seu primeiro caso sexual. Mas não foi ele quem a engravidara. E completou-lhe a confissão: “Francisco tem coragem para o que der e vier”.

Ainda se lembra da moça que Cavalão se recusara a salvá-la de se afogar no açude? Pois Cavalão, naquele instante, havia terminado de fazer sexo com ela. Aguardava-a, na beira do açude, se banhar. Não esperava dela gritar por socorro, a brincar de se afogar. Por isso, o rapaz inventou aos socorristas de ir defecar no matagal. A tal moça fora Maria das Dores, sua tia, amante de Cavalão. 

                                                      ***

Quando José Batista Rolim, sobrinho de Maria das Dores e investigador das aventuras audaciosas de Cavalão, já casado e morando e trabalhando em São Paulo, um certo dia, ao receber a visita de um conterrâneo em seu apartamento, ouviu dele a estranha morte de Francisco José da Silva. Segundo seu conterrâneo, deu-se uma estranha morte, para quem obtivera fama de ter tanta coragem. Aconteceu assim: Cavalão conheceu uma senhora casada, onde morava num sítio, pouco distante da cidade. Apaixonou-se por ela. Sempre ia por lá, às escondidas. Após receber, pela amiga da amante, o recado urgente, dirigiu-se em começo de noite à residência dela.

Mas durante a noite, ao voltar da casa da amante, na madrugada de lua nova, a cavalo, todo satisfeito, esquentado de álcool, encontrou-se com uma onça. Teve certeza de que era a fera devido ao seu rugido. Daquela vez, não deu tempo de Cavalão mostrar ter coragem para o que der e vier. Só o cavalo conseguiu escapar da fera.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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