Antevi, amada, em nosso túmulo,
teu retrato ao lado do meu.
Quero, agora, neste momento,
que mais eu quererei saber?
Ela sentou-se na calçada da Rua do Video, como de costume, às seis horas da tarde. Retirou do bolso do vestido o terço para rezar, fazendo o sinal-da-cruz. Mas, ao iniciar o Credo, penetrou o olhar na fachada da igreja do Rosário. Diante dela, a igreja do seu casamento, setenta e cinco anos atrás. O relógio de sol marcava horas, como naquela tarde, quando ela, vestida de noiva, adentrava no templo para iniciar-se no mistério do casamento.
- Tão sublime e espinhento mistério.
Ajeitou-se na cadeira de balanço e deixou-se absorver de passado diante da fachada da igreja. Fora ela mesma quem escolhera o templo para se casar. Achava-o parecido a uma igreja moura, com arcadas das portas à moda grega. Naquele dia, o pano vermelho estirava-se até o altar. Penetrara na igreja com o pai, sobre o tapete vermelho. Na lateral dos bancos, a fila de rosas brancas, de um lado e do outro. O órgão incensava de som os presentes. Adiante, o sacrário dava-lhe força para não desmaiar. Ela, segurando o braço do pai, caminhava para o noivo. O ambiente de harmonia flutuava na abóbada, descendo pela grinalda do vestido branco.
- Como se passou o tempo.
Ela balbuciou as palavras e deixou-se encantar com a rua. A mesma rua, a mesma casa, desde o início da vida de casada. Sete filhos nasceram na mesma residência. Criaram-se, estudaram todos em Barbalha. O mais velho já havia morrido. Os três, que se formaram em Recife, por lá se estabeleceram. As noras não quiseram vir morar no Cariri. As duas filhas mais velhas casaram-se. Mas moravam com ela somente a filha mais nova, que se decidira a viver mais ela.
- Ah, se ela mudasse o gênio.
- Que gênio, mãe?
Não havia notado a filha na janela, com as mãos na cintura, interrogando-lhe. A moça olhava-a com veemência, como de outras vezes. Andava emburrada, desde a conversa que tivera com a mãe, tentando-lhe amolecer o coração, para empurrar o namorado dentro de casa.
- Estava conversando com os meus botões.
- Esses seus botões podem murchar, mãe.
Não deu tempo de responder a grosseria da filha, já que a moça deixou a janela, arrastando os chinelos pela sala. Voltou a derrear-se na cadeira, para iniciar o terço. Porém uma voz cortou-lhe a intenção. Encontrava-se atrás dela, batendo no espaldar da cadeira, a Conceição, também viúva e morando com a filha do meio, separada, e o neto. A mulher não tirava o preto da viuvez e se deliciava em falar palavras negativas:
- Nem Deus ajeita este mundo, Adalgisa.
- Só ele ajeita, Conceição. Mais ninguém.
Ela passou a contar a Conceição o que ouvira no rádio. Dias atrás, entre Missão Velha e Milagres, mataram uma mulher, depois de amordaçá-la e seviciá-la. Já se comentava que havia aparecido tarados pelo Cariri, atrás de se aproveitar de mulheres:
- Há perigo por tudo o que é canto.
- Muito, Adalgisa, muito. Tudo culpa da modernidade.
Ela procurou mudar de assunto, puxando a vizinha para a religião. Lembrou-se da missa pela manhã, tendo padre Eugênio falado sobre caridade cristã:
- Caridade que muitos católicos, Conceição, nem de longe praticam.
- Ora essa, Adalgisa. Indireta pra mim não.
Ela não esperava de Conceição o desaforo. Diante dela, sentada na cadeira de vime, a vizinha fitava-a de testa enrugada. E ainda lhe disparou o protesto: "Nós lá de casa praticamos caridade. Ora essa". Logo ela se lembrou dos comentários de ser a família de Conceição avarenta e mesquinha.
Ela não observou a filha na janela. Mas a moça ali estava com o mesmo olhar de reprovação de momentos atrás. No entanto, a filha não aguardou Conceição, em pé, falasse algo. De voz forte, dirigiu-se à mãe: "Esquente não, mãe. Isso é coisa de gente mesquinha e avarenta".
Conceição se sentiu desmoralizada com a intromissão da moça. De voz alterada, pedia-lhes retratação. Não podia voltar para casa com a difamação rodando no ar. As duas teriam de lhe pedir desculpas: "Meus filhos vão saber disso. Ora essa" E terminou de protestar do outro lado da rua, repetindo seu ora essa. Com força, bateu à porta de casa.
Mãe e filha, em início de noite na Rua do Video, entreolharam-se. A filha sem rigidez no olhar. Ela, imóvel na cadeira de balanço. Era como se, pela primeira vez, mãe e filha se unissem para rebater o que lhes viesse pela frente. Entretanto, a rápida harmonia agitou-se logo com a tirada da filha: "Mas veja só quem fala de caridade: dona Adalgisa".
- Me respeite, Antonieta. Sou sua mãe.
- De criação.
Ela engoliu seco as últimas palavras da filha, que entrara arrastando as sandálias nos mosaicos da casa. Sem qualquer reação, ela se deixou derrear na cadeira. Procurou rápido agarrar-se à cruz do terço, no momento a única âncora espiritual. Logo o calafrio tomou-lhe conta do corpo, e a dor aguda no braço esquerdo afligiu-a. De quando em quando, a filha, deu para lhe passar no rosto a insolente expressão: mãe de criação. Não sabia que mais lhe dizer para convencê-la. Fora um erro do marido com a moradora do engenho.
- Deus tome de conta de sua alma, Otávio.
A filha adotiva lhe perguntava pela mãe verdadeira: se ela ainda estava viva. Qual o destino dela. Mas só Adalgisa sabia o paradeiro da infeliz mulher. O marido Otávio mandara-a para o engenho de um primo. Algo lhe dizia que estava na hora de revelar o segredo para Antonieta.
Naquela noite, ela decidiu confessar para a filha a verdade. Levantou-se da cadeira de balanço, com o terço pendurado na mão. De repente, pareceu avistar Otávio vindo do comércio, e a igreja do Rosário ao fundo. Não era ilusão. Ele se achegava naquele seu lento andar. Ele iria com ela ao encontro da filha adotiva? Ou queria empatá-la de falar a verdade para Antonieta? Ela, sim, não morreria com o segredo atravessado dentro dela. Perto de completar noventa e cinco anos, precisava se aliviar daquele sofrimento de anos.
Agarrou-se à porta de entrada para não cair. O sangue correu-lhe agitado à cabeça, a dor fina lhe rasgou o coração. Ela apertou mais os dedos na madeira da porta. Suava frio. Lembrou-se do marido, nos últimos momentos, pedindo-lhe perdão. Já lhe havia perdoado de coração. Na visão dela, o mundo se escurecia, e o marido amparava-a. Otávio, de carne e osso, vestia-se no caro terno branco, com mesmo sorriso maroto, a chamá-la de minha querida.
- Você veio me buscar, Otávio?
Ainda avistou a igreja do Rosário a se esconder na luz fraca da rua. A cadeira de balanço com o mesmo pano listrado, onde o marido se sentava à boquinha da noite, na calçada de casa, que sofreram para construí-la.
- Que Deus tome de conta de nós dois.
Ninguém lhe ouviu as palavras. A filha lá para dentro cantava, acompanhando o rádio. O vizinho, saindo de casa, antes de dar partida no carro, desejou-lhe boa-noite. Ela assegurou-se de que não adiantava andar. As pernas cediam-se ao corpo trêmulo, a respiração ofegante. Chamou pela filha, uma, duas, três vezes. Precisava revelar-lhe o paradeiro da mãe de sangue, para não levar a culpa para o túmulo. Mas o som alto do rádio e a voz da moça agoniavam-na. Ela forçou o próprio corpo, tentando agarrar-se à porta, porém os dedos se escapuliram da madeira. E ela caiu ali mesmo, no batente da porta de entrada. De dentro dela, como um arroto, o gemido voou pela Rua do Video. Gemido moribundo, expelido no último instante de vida de um corpo mal-amado.
JN. Dantas de Sousa, Eurides