Dedé-adivinhador (Dantas de Sousa) - conto

- Ai de quem se atrever, meu caro Joaquim Madeira, ser contra aos costumes do mundo de hoje. Muitos só querem escutar o demônio, e somente os tidos como loucos é que têm coragem de falar verdades. Mas esses tais se encontram na iminência de serem martirizados, como ocorreu no ano passado com Dedé-adivinhador.

No momento em que padre Sebastião, ainda sentado à mesa na casa paroquial, depois do almoço, citou o nome de Dedé-adivinhador, o médico Joaquim Madeiro Neto, chegado no dia anterior de Fortaleza, a serviço do governo estadual, baixou a xícara de café no pires, para lhe perguntar quem era Dedé-adivinhador e o porquê do seu martírio. Calado durante o almoço, o motorista, que viera com o doutor, também se interessou pela história, não se levantando da mesa.

Ao ouvir pacientemente o doutor Madeiro, padre Sebastião sorriu manso, como se não valesse a pena gastar o momento da digestão do almoço revirando história de um maluco, dentre inúmeros que perambulavam pelas ruas de Juazeiro do Norte. Mas, diante dos olhares atenciosos dos dois visitantes, e como o vigário procurava agradar ao funcionário do governo, em troca de remédios para seus paroquianos, apresentou-lhes de início Dedé-adivinhador como adulto solteiro e casto, dado a fanatismo e à prática de vidência. Desde garoto, muitos o tinham na conta de adivinhador.

Segundo boatavam, ele não errava início de inverno nem ano de seca. Sabia bocado de rezas de cor. Puxava rosário, celebrava ao seu modo, nas casas do povo da periferia, a Renovação do Coração de Jesus. Na verdade, apesar de muitos o julgarem um ser lunático, porém acreditavam nele e nos seus dotes divinos.

Depois que a mãe de Dedé-adivinhador morrera de tuberculose, ele continuou morando, no bairro Pio XII, na mesma casa amarelo-ovo, de duas janelas de cedro, estreitas, pintadas de azul-escuro, e de uma porta da mesma madeira, porém repartida em duas na horizontal e da mesma cor das janelas. Na frente da casa, no alto, havia, em alto-relevo, pintado de azul-escuro, o desenho de uma cruz, emoldurada de sete setas como raios. Abaixo do desenho, a frase: Com Deus na frente e paz na guia. Entre janela e outra, o número trinta e três que, para o místico morador, associava-o aos anos de Jesus, vividos sobre a Terra.     

- Estive lá na casa de Dedé-adivinhador uma única vez, para a mãe dele receber a unção dos enfermos.

Naquele começo de noite, ao entrar na casa de Dedé-adivinhador, padre Sebastião se impressionou com a parede dianteira da sala da frente, mais a da esquerda, tomadas de quadros de santos, de cima a baixo. No meio da parede dianteira, a mesinha de toalha branca de renda e o oratório cheio de estátuas e de flores de plástico. A vela sete-dias iluminava o Coração de Jesus e os demais santos da sala. Na parede direita, retratos de familiares e dois de artistas famosos. Pelo chão de tijolos crus, quatro tamboretes de couro e a bancada de madeira. Afora isso, destacava-se no ambiente o rádio elétrico sobre a mesinha, no canto direito da sala.

Diante do interesse de padre Sebastião por aquele objeto antigo, Dedé-adivinhador lhe declarou que aquele rádio fora abençoado pelo vigário da matriz de Nossa Senhora das Dores, anterior a padre Sebastião, o monsenhor Lemos, a pedido do seu pai já falecido. Segundo Dedé-adivinhador, o seu rádio só servia para a missa-do-dia-vinte (em homenagem póstuma ao Padre Cícero) e para a missa diária, às seis horas da manhã, na Matriz.

Não conseguiu padre Sebastião descobrir desde quando Dedé-adivinhador começou a andar, pela cidade, vestido de roupa de seda, que brilhava ao sol. A vestimenta - turbante, camisão de dois bolsos e mangas compridas, calças folgadas. Interessante que, em cada dia da semana, ele se vestia de uma cor simbólica. No domingo, vestia-se de branco, pela obtenção da paz mundial. Na segunda-feira, de verde, pela esperança de um mundo melhor. Na terça-feira, de roxo, pelo arrependimento dos homens e mulheres atolados no pecado. Na quarta-feira, de amarelo, pelo progresso espiritual do povo do mundo. Na quinta-feira, de marrom, pelo espírito de pobreza permanecer nos homens e mulheres. No sábado, de preto, anunciando a todos a morte inevitável, a cruz, por que cada um deveria passar.

Em seu pescoço, ele conduzia o crucifixo de madeira envernizada de marrom. De quando em quando, mostrava-o ao povo, afirmando-lhes que o crucifixo possuía poder de afastar todos os espíritos maus espalhados pelo  mundo. Viam-se, ainda no pescoço dele, o rosário de contas azul e branco e a medalha prateada, contendo as imagens do padre Cícero e de Nossa Senhora das Dores. 

- Como é excêntrico esse povo daqui, padre Sebastião. - alteou a voz doutor Madeiro, enchendo outra vez a xícara de café. - Mas, senhor padre, me diga o que Dedé-adivinhador fez de tão grave, ao ponto de ser martirizado? 

Pensou padre Sebastião um pouco, o que deixou os dois mais curiosos. Mas o sacerdote, antes de lhes contar como ocorrera o martírio, revelou-lhes que, mesmo com toda a excentricidade do rapaz, muita gente, até ele próprio, gostava de comprar os saborosos doces que Dedé-adivinhador fabricava na sua casa: doce de goiaba, banana, batata, buriti, gergelim, coco e leite. Exímio doceiro era ele. Vendia rápido as latas usadas de leite em pó, as quais traziam no balaio, sobre a cabeça. Se durante as vendas, o povo aperreava-o, taxando-o de louco, ele vinha logo com a resposta pronta: “Sou sim. Por dinheiro, por dinheiro”. E quando desejavam descobrir como surgira o dom de adivinhador, ele se usava da visão: “Foi Cristo-rei. Ele me apareceu num sonho e me mandou andar vestido assim, para o mundo se converter”.

No entanto, o que mais intrigava à população era como Dedé-adivinhador conseguiu chegar às suas previsões, quando se sabia que ele não aprendera a ler, não gostava de assistir à televisão nem a noticiários de rádio.

No dia a dia, Dedé-adivinhador pregava pelas ruas de Juazeiro do Norte suas profecias. Iniciava-as com a mesma frase: “Quem quiser ouvir, guarde elas no coração de pecador”. Sem ter medo de expô-las, lançava-as para o povo as ouvidas em sonhos: o mar iria tomar de volta o que era seu, matando milhares de gente. Animal de quatro pernas iria só ser visto nos filmes. A comida de planta iria se transformar em comida de plástico. O mundo iria se acabar em fogo, de tanto esquentar, por causa da poluição que inundará o céu. As mulheres iriam ser chocadeiras para abastecerem o mercado mundial, praticando aborto e vendendo os fetos. O espermatozóide, de tanto ser desperdiçado, iria enfraquecer a vida humana. O mundo iria se empestar de ladrão e bandido. A humanidade iria entrar em decadência, por causa da multidão de homem querendo ser mulher e de mulher querendo ser homem. 

- Coisas absurdas, padre Sebastião. - bradou doutor Madeiro, socando o murro, com a mão direita, na mesa. 

- Calma, doutor Joaquim Madeiro. Pois que eu posso lhe dizer como é difícil ser contra aos costumes do mundo de hoje. Ai daquele que se atrever.

Foi por causa da sua última previsão que Dedé-adivinhador sofreu o martírio. Ao protestar, no centro comercial da cidade, contra o desenfreado homossexualismo mundial, dois gays mandaram-no calar. Só que ele não se calou, porém aumentou a voz. Declarou ser desobediência a Deus, e um pecado mortal, de levar alma para o inferno, um homem, nascido homem, querendo ser mulher; e uma mulher, nascida mulher, querendo ser homem.

Chegou, assim, Dedé-adivinhador a apanhar dos dois gays, em meio a gargalhadas, aplausos e deboches do povo. Para completar, poucos dias depois, acharam-no morto em sua própria casa, na sala dos santos, de mãos atadas para trás, com a cabeça dentro do saco plástico, amarrado ao pescoço dele. Encontraram-no ao final da tarde de uma terça-feira, já fedendo, e vestido na roupa preta do sábado.  

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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