Seis e meia da manhã, primeira
sexta-feira de maio. Na sala da frente da casa de Dona Lu, já havia algumas pessoas
sentadas, a fim de se consultar. Todo santo dia havia gente lá. A casa pequena,
estreita, de porta e janela, pendurava-se na ladeira de calçamento de pedra, na
Rua do Horto.
Na sala da frente se destacava a
mesinha com toalha de renda branca. Sobre ela, a cruz de madeira, de meio
metro, com Jesus crucificado envolto em rosários e fitas de pano de várias
cores. Quase se encostando aos braços da cruz, as estátuas de Nossa Senhora das
Dores e de padre Cícero. À frente dessas estátuas, duas outras de tamanho menor:
frei Damião e Santo Antônio.
Diante do crucifixo, a vela sete-dias
acesa e o jarro de vidro, com três rosas de pano vermelho. Afixados à parede
verde-cana, em torno da mesinha, onze quadros de vidro: são Miguel Arcanjo,
matando o satanás caído ao chão; padre Cícero, entre nuvens; santo Expedito,
pisando o preto corvo; são Jorge, matando o dragão; são Francisco das Chagas,
sobre o Santuário de Canindé; são João Batista, abraçado ao carneirinho;
são Sebastião, preso à árvore e furado de setas; santa Luzia, com dois olhos
azuis dentro da bandeja; são Pedro, com as chaves do Céu; são Lázaro,
feridento, com duas muletas e diante de dois cachorros; e Nossa Senhora do
Desterro, sentada no jumento, com o Menino-Deus ao colo, fugindo mais São José
para o Egito.
Quase encostada ao teto e iluminada
pela pequena tocha do candeeiro, a imagem do Coração de Jesus, arrodeado de
jasmins de pano, amarelava-se atrás do vidro, na moldura retangular. Ao lado
esquerdo da mesinha, o vão de porta, de onde se avistava, dentro da casa, a
anciã, fumando cachimbo, e Dona Lu a rezar numa moça.
Mas o silêncio da sala da frente foi quebrado pela mulher de cocó preto, segurado pelo pente vermelho. Do lado de fora da janela, ela gritou: "Dona Lu, a senhora pode passar um raminho no Expedito? O negócio dele é sério, Dona Lu. Num dá pr’adiar não".
O pessoal da sala se assustou. A mulher da
vez, de bermuda florida, blusa mostrando os seios, negou-lhe de pronto a
intromissão, com o incisivo “de jeito nenhum”. Ela foi logo apoiada pelo
homem moreno, de boné vermelho com escudo do Flamengo; por duas romeiras de
chapéus de palha à cabeça, blusas de malha branca e, sobre elas, a pintura da igreja
de Serra Talhada, no Pernambuco; além de mais três mulheres, de sacolas
plásticas entre as pernas e a reclamar de ainda irem fazer o almoço. Só a
mocinha, ouvindo o fone de ouvido, levantou o dedo polegar, acatando-a.
- É muito sério, gente, insistiu a mulher. O Expedito está com
mais de mês que nem come nem dorme. Tem negócio cima dele:
coisa-ruim, botada. Só me diz que foi aquela cachorra, rapariga da besta-fera.
- Epa, epa, epa. Assim, não atendo. - levantou
a voz Dona Lu, lá de dentro. - Deus é pai de Jesus e do divino Espírito Santo.
Com o poder de Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, e com paciência, vai
se afastar o mal do corpo do teu marido.
Três da sala e a mulher da janela responderam: “Amém, Dona Lu”. A casa retornou ao sossego. Dona Lu voltou a passar, sobre a moça sentada de mãos abertas para cima, sobre os joelhos, o ramo de pinhão-roxo. Rezava agora alto: "Dor, abrando a tua ira e quebro as tuas forças. Mesmo que Judas vendeu Cristo, que é Nosso Senhor Jesus e que pelo mundo andou, olhado e vento caído Jesus curou”. Repetiu a oração. Ao término, Dona Lu jogou o ramo pela porta da cozinha, para o terreiro. Por fim, benzeu a moça por três vezes, avisando a ela, já na porta da sala da frente, para voltar nas próximas três sextas-feiras.
Entretanto,
nem bem a moça da consulta atravessou o vão de porta, a mulher do cocó,
arrastando o marido pela manga comprida da camisa, se enfiou pela casa.
Insistia para Dona Lu que só iria sair da casa dela quando visse o marido são e
salvo. Tinha vindo do inferno-da-pedra, puxando pela asa o abobalhado, todo
enlambuzado da macumba jogada nele pela cachorra, rapariga da besta-fera.
- Epa, epa,
epa. Assim não atendo. Já atropelou o povo da sala, agora a mim também? Bote
educação, minha filha. Eita, que sacrifício esse meu.
- Pior é o
meu, Dona Lu, revidou a intrusa, de dedo indicador apontado para Expedito. - Espie
só meu sacrifício: sete filhos no
cangote, por causa desse jumento, e hoje sem um pingo de água no pote lá de
casa. Duvido quem quer viver com um homem desse. Era tão disposto, cheio de
vida. Mas hoje, uma égua. Não serve pra nada, nem
mais praquilo.
- Peraí,
minha filha. Pare dessa latomia, pelo amor do Santo Cristo.
Com palavras
brandas, se valendo de padre Cícero, de Jesus e de Nossa Senhora, Dona Lu
procurou consolar os seus clientes. Eles voltaram a se sentar dóceis na mesma
ordem dos lugares. Mas, antes de atender ao Expedito, a rezadeira fez a pregação,
escorada na mesa dos santos:
- Meus irmãozinhos
em Cristo, vocês nem avaliem o quanto já trabalhei depois que recebi essa
obrigação. Já curei viciado na cachaça, na droga, no jogo. Já fiz ajuntamento
de casal. Só Deus sabe meu sofrimento. Tem dia que nem aguento. Mas estou pagando
meus pecados.
Os pecados a
que Dona Lu se referiu eram o de não ter salvado o único filho, que morrera
antes de completar um ano de idade, além de haver perdido o marido, que
arranjara outra e se bandeara pelo mundo. Ficou só com a mãe idosa, quase cega.
- Segui as
minhas vinte e sete linhas de trabalho. Mas essa penitência já está por um
fio, pra se acabar. Aí só vou continuar rezando nas crianças. Graças a Deus,
vou me aliviar mais dessa atribulação.
O povo da Rua do Horto já se acostumara com a história de Dona Lu de estar chegando ao fim de atender o povo adulto. Cada vez mais a mulher era procurada. Seu verdadeiro nome pouca gente sabia: Maria de Lourdes dos Santos Oliveira. Mas o que se sabia mais era ver a casa de Dona Lu sempre entupida de sofredores.
Ela só atendia de dia porque, segundo ela, não servia reza nenhuma com plantas coletadas durante a noite. Também só rezava de vestido branco e, sobre ele, a cruz de madeira e a corrente de prata com as medalhas do padre Cícero e da Mãe das Dores. Com a mãe, ela aprendera as rezas, mas havia algumas que ela mesma criava na hora, dependendo da situação. E apresentou esta confissão: "Tem uma voz que me diz como devo trabalhar. Mas minha mãe me ajuda quando a doença é da braba, ou quando o espírito é muito pesado".
Ainda Dona Lu pregou aos clientes ter visto muitos na sua casa, com dor no corpo todo, para depois saírem satisfeitos com o seu trabalho. Ela não tinha o costume de cobrar pela reza, porém pedia ao povo que lhe desse de acordo com as suas posses, ou alimentos para o sustento e para distribuir com os de necessidade. Num gesto raro, ela exibiu aos presentes o álbum de fotografias, que o retirou da gaveta na mesa do oratório, na sala da frente. Ao folheá-lo, pediu a atenção de todos para a moça de Cabrobó, que ficara boa da vista. Também para o idoso de Acopiara, que se livrara duma ferida braba. Havia ainda no álbum vários retratos de pessoas de outras cidades do Cariri, as quais, segundo ela, também receberam ajuda espiritual por meio dela. E terminou a sua pregação assim: "Quando coloco a cruz na mão, se a criatura tiver fé em Deus e Jesus, vejo tudo. Por isso, quem vem aqui, traga uma saca de fé. Meu trabalho espiritual tem que ter duas coisas: a cruz e a paciência de Nosso Senhor. Quem não quiser me ouvir o que digo, que se arretire deste meu quixozinho".
Após essa advertência de Dona Lu, quem teve coragem de perguntar a rezadeira coisa alguma? Afinal, palavra de Dona Lu sempre foi respeitada. Era por isso de ela ser muito procurada. No entanto, naquela primeira sexta-feira de maio, aconteceu o falecimento de Dona Lu. Mas espalhou-se pela Rua do Horto que Dona Lu morrera por ter rezado num tal de Expedito, carregado de um enxame de coisa-ruim.
JN, Dantas de Sousa, Eurides.