Na antiga cadeia de Juazeiro do Norte, a da Rua São
Luís, moraram quase sete anos, na última cela do corredor, à esquerda de quem
entrasse, duas figuras esquisitas. Na cela pequena e quente, eles dois se
tornaram amigos. Em momento de desespero, um procurava dar conforto ao outro. Uniram-se a tal ponto que, para morrerem, se prepararam.
- Eu ainda travei conhecimento com os dois, doutor Vevé.
- Me fale deles, tenente?
O tenente já havia se acostumado com insistências do Vereciano Palmeira, advogado sem sorte na profissão, em Juazeiro do
Norte, sua cidade natal. Segundo comentavam, ele só pensava em ganhar dinheiro. Por isso, clientes se afastaram do seu escritório. O advogado,
para não perder a pose de doutor, botou na cabeça que iria publicar livros
de fatos ocorridos na região caririense.
- Me conte, tenente Silva, insistiu o advogado, sem soltar o braço do ancião.
Em comecinho de noite, correndo ventinho de chuva,
tenente Silva derreou-se na cadeira de balanço e sorriu manhoso. Ele gostava de
contar história. Sentia-se bem ser paparicado. O tenente, ainda na
ativa, agradava aos amigos, em mesas de bar, relatando histórias. Interessante
foi que a roda de ouvintes cresceu a tal ponto que ele se tornou um juazeirense
procurado para narrar fatos da região caririense.
Um dos amigos de infância, com despeito da maneira
de tenente Silva narrar, passou a lhe tratar, com ironia, de nobre
historiador. No começo o tenente se engrossou, mas aos poucos foi se
acostumando com elogios. Depois de um tempo, ele até se
autointitulava historiador de poucas letras. Assim, diante da insistência do
advogado, tenente Silva buscou dar início à história daqueles dois amigos de
cadeia.
Luís-do-junco foi o primeiro a
chegar preso na cadeia da Rua São Luís, por causa do crime bárbaro que tinha
praticado. A seguir, tenente Silva apresentou seu ponto de vista: "Logo que bati os olhos nele, vi que era figura esquisita. Meu tino não falhou".
Pela conversa de tenente Silva, Luís-do-junco era
caboclo atarracado, cabelo batendo nos ombros, rosto engelhado, barba passando
do queixo e de olhar vagante. Não parecia alguém chegada ao prato, porém como tísico. Nunca se casara. Morava sozinho, tirando roça, no sítio
Pedra-de-fogo, entre Juazeiro do Norte e Missão Velha. Todos os que o conheceram
comentaram ser ele trabalhador, respeitador e muito religioso.
Depois da morte da mãe, isolou-se no sítio.
Entretanto, pouco tempo depois, passaram a vê-lo andando vestido na batina
preta, quase cobrindo as alpercatas grossas, de pneu. Sobre a batina, pendurado
ao pescoço, o rosário de contas brancas e o agnus-dei que, segundo ele, continha pedacinho da cruz de
Cristo. Além disso, o rapaz trazia a faixa azul, usada do ombro esquerdo para o
quadril direito, e nela havia letras e desenhos.
Mas Luís-do-junco só passou a ser conhecido por
muita gente após a tragédia. Ninguém havia desconfiado que aquele homem
inofensivo cometesse a barbaridade. Todos lhe tinham como rezador e homem
pacato. Sabia-se que na sua casa frequentavam mais mulheres que homens.
Ouviam-se de longe os cânticos e as rezas, principalmente à noite. Durante a
reza, tanto homens como mulheres se vestiam de batinas. Os homens de preto, as
mulheres de branco. Os homens de faixas vermelhas, as mulheres de azul. Cada um
dos seus seguidores possuía nomes de santos da igreja católica.
Num certo dia, tenente e Silva mais dez soldados foram às pressas, depois da denúncia, prender o rezador. Partiram às pressas para Pedra-de-fogo, a fim de trazerem, para a cadeia de Juazeiro do Norte, Luís-do-junco e seus seguidores. A tal denúncia foi apresentada por uma seguidora de Luís-do-junco, numa manhã de sábado. A mulher, de voz apressada e se mostrando cansada, avisou a tenente Silva que Luís-do-junco havia convencido os seguidores de que todos eles só receberiam a salvação no outro mundo se desse um presente para o céu. Até já havia sido preparada pelos homens, no terreiro da casa do rezador, a coivara de galhos secos. Sobre ela, puseram uma trempe.
- Só que, quando chegamos lá no Pedra-de-fogo, já foi
tarde. Encontramos só o pitoco preto de uma criança.
Diante da pausa de tenente Silva para assuar o nariz e limpá-lo devagar com o lenço tirado do bolso traseiro, além de se ajeitar na cadeira de balanço, doutor Vevé mexia os dedos de cada mão com rapidez. Acalmou-se quando tenente Silva continuou a narração. Segundo ele, ao redor da criança imolada, entoavam alto um bendito, enquanto o rezador, aos gritos, encomendava a alma da criança. Os policiais deram uma cambada de peia neles. Levaram a fila de gente a pé até a cadeia da Rua São Luís. Só que, no final das contas, só ficou preso Luís-do-junco
e a mãe do menino. E por causa do remorso, ela morreu.
- E a segunda figura esquisita, tenente Silva? -
implorou doutor Vevé, quase de joelhos, agarrado ao braço do aposentado. - Me
conte antes do senhor entrar para assistir ao jornal da
televisão.
De rompante, tenente Silva levantou-se da cadeira de
balanço, pedindo educação ao doutor, devido ao aperto em seu braço. Ao ver-se
solto, olhou para o relógio de pulso. Como faltavam dez minutos para o
início do jornal, tenente Silva resolveu sentar-se na cadeira, propondo-lhe resumir
a história do negro que matou o padre. E que foi preso. Uma multidão se formou
diante da cadeia.
- Como foi, tenente Silva? - gritou alto doutor Vevé. - Um negro matou o padre?... Isso vai ser ótimo para eu escrever.
Naquele instante, tenente Silva olhou para doutor Vevé com desprezo por ele querer ser a todo custo um renomado escritor. Como se voltasse do seu interior, afirmou rápido ao advogado que o negro se chamava Manuel Pedro. Um maluco, morador do sítio Barro branco, em Juazeiro do Norte. De uma família de abestado. Cismou de se casar com uma moça de quinze anos, branca e loira. Impressionou-se como os loucos. Resolveu, então, ir atrás do padre.
Mas a autoridade religiosa lhe aconselhou não ser caminho correto. Fez vê-lo que não faria o casamento. Daí que, no dia festivo do benzimento da pedra fundamental da igreja de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte, o maluco matou, com uma só facada no coração, em meio à multidão, o religioso. E completou: "Aquelas duas figuras esquisitas, doutor Vevé, se prepararam para morrer. Nós achamos os dois pendurados em duas linhas da cela. Cada qual com seu punho de rede enrolado nos pescoços".
JN. Dantas de Sousa, Eurides.