Faíscas de raiva (Dantas de Sousa) - conto

Deitado na rede, após o almoço, José Pereira Romão, ao avistar o morador se aproximando, acompanhado da esposa, levantou-se de vez da rede, com os olhos arregalados e de rosto vermelho-fogo. Ao vê-los próximo à escada do alpendre, estirou o dedo indicador para os dois e urrou bem alto: “Eu não aceito ladrão em minhas terras. Quem me rouba litro de leite hoje já vem me roubando faz tempo. A partir de agora eu ordeno que você mais sua família deixem a minha casa que estão morando. E é pra já”. Diante dessa inesperada gritaria do patrão, Maciel e esposa, em pé diante do alpendre, só fizeram olhar um para o outro, surpresos. Não entenderam a trovoada de José Romão. Esperavam, como de costume, ser bem recebidos por ele. Só que o velho, pela primeira vez, apresentava-lhes como a besta-fera rugindo de raiva: "Vão os dois e façam logo o que eu disse". 

Coitado do Maciel. Durante quase nove anos trabalhou fielmente para José Romão. Sempre fora o homem da confiança do patrão. Depois de haver chegado àquelas terras e de haver entrado nas graças do proprietário, passou a morar com a mulher e os quatro filhos pequenos na casa de tijolo queimado, de telha das boas, a qual o patrão mandou ajeitá-la para que eles morassem no conforto. Alguns moradores de José Romão desconfiaram daquele rápido merecimento, sobretudo por causa da casa do novato possuir sala de visita e de jantar largas, quatro quartos com portas de madeira fornida, cozinha espaçosa, banheiro dentro e outro fora de casa, e até uma despensa ampla. Além de seis janelas e quatro portas para o terreiro, a calçada de cimento, arrodeando a casa. Assim, os moradores sempre alimentaram inveja de Maciel por verem entre o patrão e ele harmonia e confiança, as quais eles nunca conseguiram.

Em pé diante do alpendre, como duas estátuas brancas, Maciel, agarrado ao braço da esposa, se sentia como se houvesse perdido terra nos pés. Pensou que demônio de carne e osso havia lançado a discórdia entre ele e o patrão. Da sua parte, jamais teve o atrevimento de desviar sequer uma agulha de José Romão.

- Eu ainda vou ser bom, seu Maciel, vociferou José Romão, em pé, socando dois murros na coluna de madeira do alpendre. - Vou lhe dar dia e meio pra desocuparem minha casa. Quem perde minha confiança é como alma desenganada do céu.

Sentindo não se adiantar em conversa, mesmo assim Maciel, de voz tremendo e pálido, pediu a José Romão o prazo de três dias para poderem ajeitar a mudança. E, para alívio seu, conseguiu a permissão do patrão. Só que, no segundo dia, após o almoço, Maciel se achegou sozinho ao alpendre do ex-patrão, que tirava sesta na rede. Subiu os degraus da escada, mostrando-se corajoso. Acordou José Romão com o brado de "com licença". Nem esperou o velho se levantar da rede. Entregou-lhe as duas chaves da casa. Destemido, sem se virar de costas, continuou caminho em busca dos seus. Vale ressaltar que, antes da impetuosa mudança, Maciel conseguiu vender os móveis da casa por ninharia. Não comentou com ninguém para onde ele e a família iriam. Rumaram de coração partido, para a capital cearense.

                                                                    * * *

     Em Fortaleza, Maciel trabalhou feito condenado, para garantir sustento da família. Iniciou sendo coveiro, no cemitério São João Batista. Depois, servente, pedreiro, vigia de construção. Quis o destino que ele se encontrasse com um conterrâneo seu, dono de uma loja próxima ao Teatro José de Alencar. O proprietário ofereceu-lhe ajuda. Foi a partir daí que Maciel se aperfeiçoou no comércio, como vendedor. Meses depois, desistindo de ser empregado, iniciou seu humilde comércio, em residência alugada no bairro Montese. E conseguiu prosperar. Com esforço, Maciel chegou a ver os quatro filhos estudarem e arrumarem empregos. Dois deles, ao terminarem o ensino médio, começaram a trabalhar, casaram-se, morando próximo à família. Um preferiu não se apressar para se casar, a fim de terminar a faculdade de Administração à noite. Esse resolveu ajudar o pai no crescimento da firma, que havia se tornado sortido mercadinho, com três empregados. Já a filha, a caçula, mimada de todos, morava com os pais. Ia de carro particular para a Universidade. Era funcionária de uma grande empresa de construções. Mesmo com toda a prosperidade familiar, Maciel mantinha na cabeça um só propósito: enquanto vivo fosse, jamais colocaria seus pés no Cariri. E se justificava: "Até na beira da minha morte, no fechar do meu caixão, não quero notícia daquele judas" (assim se referia ao José Pereira Romão). 

    Maciel considerava José Romão morador de satanás no inferno. Quando parente dele, ou da esposa, vinha do Cariri e tocava em assunto sobre José Romão e família, logo Maciel pedia para não adiantar conversa. Concluía vomitando faíscas de raiva: “Ainda vou mostrar pro judas que não sou ladrão. Nunca roubei litro de leite dele”. 

    Parentes e amigos assistiam à prosperidade de Maciel em Fortaleza. Mercadinho abastecido, clientela grande. Casa própria, dois carros na garagem. No Montese, sua família era considerada. No entanto, quando harmonia e prosperidade pairavam no lar de Maciel, ocorreu o imprevisível: a caçula Rosa Maria, ou a mimada Rosinha, apareceu grávida. Apesar de ela já ter seus vinte e três anos, sem precisar financeiramente dos pais, o trágico fato, para eles, sucedeu-se como se a casa houvesse desmoronado sobre a família, soterrando-os todos no buraco da desmoralização.  

    Para sobreviverem à tamanha desgraça, Maciel e filhos aceitaram o conselho da esposa: nada de quererem matar o sedutor. Decidiram, então, pedir a Rosinha para convidá-lo a um almoço, a fim de ouvi-lo. Deram-lhe prazo de uma semana. Antes, porém, de terminar a data prevista, o sedutor apareceu na casa de Maciel, para almoçar com a família. Realmente, o rapaz era educado. Discreto nas palavras, apresentou-se à família, durante o almoço, como engenheiro civil, colega de Rosa Maria na empresa de construções. Identificou-se como homem de paz e responsável. Confessou a todos os da família presentes que assumiria, de bom grado, o casamento. Por fim, silenciou-se para ouvir o que lhe tinha a dizer Maciel.  

O engenheiro suportou com paciência o sermão de Maciel. Ao prestar atenção ao dono da família, ele olhava, de cabeça baixa, a toalha da mesa. Alegrou-se ao término das palavras do pai de Maria Rosa: “Doutor Antônio José, o senhor agiu como se fosse um ladrão que veio, no buraco da noite, roubar nossa joia preciosa. Mas o senhor agiu como homem de bem. Todos nós estamos satisfeitos. Mas, doutor Antônio José, quem é seus pais, já que Rosinha disse que o senhor é do Cariri".

Naquela sala de jantar, nem Maciel, nem os seus, não se mostraram preparados para ouvirem o engenheiro Antônio José. Só deu tempo do engenheiro declarar que seu pai se chamava José Pereira Romão. 

Até Ritinha perdeu a educação. Parecia-se ter ouvido algo explosivo atravessar a janela da sala de jantar e desaparecer. Coitado do doutor: usou-se de sua coragem para pular a janela aberta da sala de jantar e disparar pela avenida do Montese, já que os Maciéis se uniram para não deixar se apagar do coração da família as inapagáveis faíscas de raiva da família do engenheiro. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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