Conheci Antônio Melquíades no Caldas,
distrito de Barbalha. Morava mais a mãe octogenária e de cama, devido a
problema nos ossos. Para se chegar à casa de Antônio, abria-se o portão de
ferro da rua, descia a escada de madeira, que dava no portão de entrada. A
casinha era de dois cômodos, com uma cozinha de fogão à lenha e um pequeno
quintal. Vez por outra, eu ia beber café com Antônio e a mãe dele. O rapaz me
servia na mesma xícara pequena de porcelana branca, com figura de menina com
flores no colo.
Antônio Melquíades era solteiro, dentro dos sessenta
anos. Macérrimo, desdentado, sem tirar o chapéu de feltro da cabeça, pois tinha
fiapos de cabelo. Profissão: marceneiro e dos bons. Sabia tão bem pôr cabo de
madeira em faca e panela. Trabalhava com esmero. Ao chamá-lo, certo dia, para
consertar nossa cama de casal, ele deu a ela estabilidade que, segundo ele,
dava até para dormir um touro mais uma vaca. Por essas e outras tiradas, eu
gostava de prosear com Antônio.
Na calçada alta de minha casa, ele preferia a
cadeira de assento de couro feita por ele. Logo de chegada, Antônio puxava
os mesmos assuntos: estava para cair chuva, não vinha chuva, ia fazer frio, ia
fazer calor. Já acomodado na cadeira, iniciava uma de suas histórias. Todas
elas partiam de um trabalho já exercido por ele.
Havia Antônio Melquíades trabalhado num bocado
de profissão: marceneiro, plantador de roça, tirador de leite em curral,
vendedor de frutas e legumes, quebrador de pedra, servente de pedreiro,
ajudante de caminhão, auxiliar de engenheiro civil, tratorista em obra de
construção de estrada, coveiro de cemitério, matador de bode, garçom de
restaurante de beira de estrada, amolador de faca e tesouras, sapateiro,
mezinheiro, tocador de pandeiro (e disso ele se gabava), tocador de violão. Lembrei-me
desta: ele havia vendido uma canção que compusera. Cantou até para mim, em
ritmo de baião, mas só que guardei na mente este pedacinho: “No tempo da
fome, só o que se come é o que o agricultor planta pra comer”. E
no dia em que lhe perguntei se havia jogado futebol, respondeu-me: “Joguei
de linha. Mas eita que eita. Que profissãozinha. Não tive jeito pra ganhar dinheiro
não”.
Antônio Melquíades rejeitou bebida alcoólica.
Afastara-se dela porque todas as bebidas que continham álcool não possuíam o
mesmo perfume de um suco, ou de uma bebida que Nosso Senhor deixou para o
povo: água descendo por dentro dos peitos, sem fazer queimação.
Por fim, Antônio era um católico ao seu
modo. Segundo ele, não vivia atolado na igreja igual aqueles pés de padre,
ou aqueles que escondiam as suas viadagens. Coincidência ou não, no mesmo
instante em que ele terminou de me falar a sua última observação, ia passando,
diante de nós dois, um rapazinho, ladeado por duas garotas.
- Espie só, meu doutor. - alertou-me
Antônio Melquíades, apontando o dedo indicador bico de papagaio para as costas
dos adolescentes. - O senhor está vendo aquele desconjuntado no meio das
duas cheirando a leite? Pois a vergonha dele já voou.
Espantei-me com a palavra “desconjuntado”.
Ao lhe perguntar o significado dela, Antônio me pediu para eu imaginar me
olhando diante de um espelho, nuzinho como nasci. Indagou-me: “O que o doutor está se vendo agora?”. E mesmo
antes de eu lhe responder algo, ele me descreveu o corpo de um homem assim: abriu
a sua camisa e me mostrou seus dois peitos pequenos e arrodeados de pelos.
Explicou-me que o seu não era como o de uma mulher, não tinha cabelo e não eram
iguais a de uma vaca. Em seguida, agarrou-se à braguilha de sua calça e
mostrou-me, enrolado no pano da calça, seu pênis. “Está vendo isso aqui, meu doutor.
Eu e o senhor e todos os homens nascem com isso pregado no corpo. Hê-hê, meu
doutor, pé de caju não dá mamão”.
Discordei de imediato dele ao lhe anunciar que já se podia retirar o pênis. E lhe perguntei se já ouvira falar na televisão. Ao que ele me relatou: “Ouvi, meu doutor, na televisão. Mas, he-hê, de poder arrancar até pode, até se joga pros gatos comer. Só que digo pro meu doutor: homem mais mulher, criados por Deus, continuam até a morte homem e mulher. Dentro dos espíritos deles, o que Deus plantou não se desraiza mais não. Por isso, meu doutor, que homem nasce e morre homem, mulher nasce e morre mulher. Foi feito por Deus está feito, desde o começo do mundo. Satanás quer acabar com que Deus fez, mas não consegue não. Têm muitos atoleimados nesse mundo que pensa que o sol pode chegar a ser lua”.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.