Nossa conversa no alpendre foi interrompida pelo espantoso grasnado do gavião. Tal duas crianças curiosas, ficamos a procurá-lo. Até que avistamos o danado sentado num dos cajueiros. Após o receio passar, jogamos para a paisagem o riso de sossego. Mas a burra Mimosa do meu morador relinchou de imediato, parecendo sorriso escrachado, como se gozasse de nós, gente da rua. E meu convidado, Jorge Pontual, comerciante de material de construções, sem mais se lembrar do que narrava antes da passagem do gavião, ao retornar para a cadeira de balanço, expressou: "Aquele gavião, doutor Rodrigo, me fez lembrar de quando eu ainda morava no Lama".
Não lhe perguntei sobre o lugar Lama. Deixei Jorge passear, com olhos saudosos, pela paisagem do meu sítio com jeito de mais chuva em dezembro. Dali a pouco, Jorge Pontual, derreado na cadeira, declarou-me: “O Lama, doutor Rodrigo, é o arruado onde eu nasci. Pai, mãe e meus cinco irmãos, comigo, somos todos de lá”.
Conforme Jorge Pontual me disse, o povo de perto do arruado debochava de quem era de lá, ao zombarem: “Nasceu na Lama”. Mas desde sua família ter vindo morar em Juazeiro do Norte, ele havia se esquecido da piada e também deixou de andar por lá. E retornou a relembrar-se do gavião: "Por causa daquele desbocado, fui com minha mente lá no Lama. Aí me lembrei, doutor Rodrigo, o que se passou comigo uma vez no Lama. Deu um bocado do que falar por lá”.
Deixei-o, então, meu convidado à vontade para falar. Então começou ele a narrar-me que, num certo dia de manhãzinha, com ventinho
frio correndo, ele descia por uma estrada do
Lama, sozinho, depois de ter ido visitar um tio, que chegara de São Paulo a passeio. Vinha pensando como daria a negativa ao tio, que o
convidara a ir morar na cidade do interior paulista, a fim de trabalhar
no canavial. Mas, num rápido instante, a sua reflexão mudou de rumo. Quando
entrou na curva, sentiu medo da assombração. A duzentas braças do fim da
ladeira, o adolescente Jorge avistou o tição de fogo. E, cada vez que se
aproximava da esquisitice, o espírito dentro dele lhe dizia que era coisa do
outro mundo. Ficou na dúvida, mas sabia, como os mais antigos falavam, que as coisas
do outro mundo só apareciam de noite, por causa das trevas.
- A misteriosidade, doutor Rodrigo, foi se virando numa brasona. E foi tomando volume. Minha pele ficou como a de um porco-espim.
Paciente, à espera de eu terminar de
rir, Jorge Pontual se deixou vagar com os olhos pela agradável natureza do
sítio. Quando ele me viu sério, voltou a me relatar que botou o medo para as
costas e sustentou a mão da coragem, a fim de enfrentar a dita
assombração. Saiu a andar de olho pregado na visão estranha. De repente,
o silêncio que tomava o mundo se partiu em dois por causa dum gavião que viera
rasgando o tempo, num grasnar aperreado de fome. Só que a ave agourenta ficou a
rodar em círculo no céu, arrodeando a luz do tição de fogo.
- Naquele momento, doutor Rodrigo, eu
me vi dentro duma redoma de mundo. Avistei com cara de abestado o gavião
sobre minha cabeça, se rasgando de gritar, e o tição de fogo aceso que não se
apagava. Cada passo que eu dava aumentava o fogo. Chegou a turvar
minha visão.
Quando a visão ficou para trás, Jorge
Pontual apressou-se nos passos. Ao entrar no povoado, passou a falar para o
povo sobre a assombração que acabara de ter visto. Num instante, a
curiosidade de todos foi tamanha que não o deixaram entrar mais em casa.
Levaram-no de volta até o lugar da assombração, pois queriam testemunhar
o tição de fogo a aumentar de tamanho, duma forma que ninguém jamais havia
visto no Lama. Realmente, os que acompanharam Jorge Pontual até o local
voltaram de lá atiçados e decididos a descobrirem o tal mistério.
- Foi o padre da capela do Lama o
desencantador do mistério, doutor Rodrigo. - e meu amigo deu uma gargalhada
estridente, que me fez lembrar aquele gavião sobre o alpendre.
Para Jorge Pontal, o padre Aniceto era mesmo sabedor de tudo. Lia muito. O padre tinha muita fé, muito saber. Por isso, contaram-lhe a tal assombração tal qual Jorge Pontual presenciara e como eles haviam testemunhado.
Para melhor se certificar do estranho fato, o vigário mandou chamar Jorge Pontual, para checar sua conversa com a dos outros. E uma vez que padre Aniceto ainda desconfiava do mistério do tição de fogo, pediu prudência ao povo do Lama. Mandou que todos rezassem, com fervor, para que Deus lhes revelasse a verdade do fato: se era sobrenatural ou não.
Após três dias, a verdade se deu. Seu Sebastião-do-padre, um velho considerado no Lama, a
mandado do padre Aniceto correu terra, focinhando o local do tição de fogo. O
ancião seguiu estrada, dia amanhecendo, sem despertar medo, amparado pela reza
do padre. Lá pelas tantas, descobriu o misterioso tição de fogo.
Diante do padre Aniceto, no salão atrás da capela lotado de fiéis, Seu Sebastião-do-padre relatou o que descobrira: o tição de fogo era feito da folha de pau-doia (pronuncia-se “dóia”). As folhas de pau-doia, as que ficavam murchadas pelo chão, com o tempo surgiam delas um fogo. Como aquele que sai das caveiras: o fogo se incendeia no ar, e o povo o chama de fogo-fátuo.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.