Fui macho ou não fui? (Dantas de Sousa) - conto

Na barbearia de Zé-evangélico, na movimentada Avenida Castelo Branco, em Juazeiro do Norte, o ancião, ao terminar de cortar o cabelo e de contar um fato ocorrido consigo, orgulhou-se: “Penso que ninguém daqui fazia o que eu fiz. E poucos tem a coragem que eu tive”. Entrando na barbearia o idoso de chapéu de couro, ao ouvir essa fala do ancião, desejou saber dele o que lhe acontecera de tanta coragem. Mas Zé-evangélico se adiantou: "Seu Damião foi motorista de caminhão bocado de tempo. Ele não trabalha mais. Vive de aposento, numa boa. Mas tem automóvel no posto de táxi da Praça Padre Cícero".

Sem dar ouvido a intromissão do barbeiro, Seu Damião pagou o corte do cabelo e da barba. Após isso, dirigiu-se educado para o idoso: “Amigo, eu tinha terminado de contar, antes de você chegar, uma história do tempo que eu viajava de motorista, num chevrolet meu. Isso foi em 1965, depois dos militar tomar o poder dos comunistas. Naquele tempo, a vida era outra, não tinha essa violência. Pois bem, eu passei por uma enrascada”. A sogra de Zé-evangélico entrou na história: "O senhor, Seu Damião, nasceu de novo. Jesus salvou o senhor".

Seu Damião agradeceu, sorrindo, a intromissão da senhora. E sentou-se junto a Zé Vital, a fim de lhe contar a mesma história. Iniciou dizendo que, numa das viagens, no tardão da noite de lua cheia, pensou em parar o chevrolet, para desinchar a bexiga. Tinha costume de viajar sozinho, para não ter aumento de despesa. Dirigia-se a Cabrobó, no interior de Pernambuco. Carregava na carroceria a carga de rapadura, para entregar a um comerciante daquela cidade. E foi preciso parar o caminhão para mijar sobre o pneu da frente, do lado da porta dele. 

Na claridade de lua cheia, Seu Damião avistou um homem de chapéu-de-palha, de saco às costas, aproximar-se. Deu para perceber ser sujeito do bem. E o desconhecido foi logo lhe pedindo carona até Cabrobó. Sem medo algum, Seu Damião resolveu levá-lo.

Ao começarem a avistar as lâmpadas de Cabrobó, o pneu da frente, do lado do passageiro, baixou de vez. Por causa disso, desceram os dois para consertá-lo. O passageiro se mostrou ser ativo no serviço. Mas só que ele caiu na tentação do satanás. Foi aí que o caldo embolou de repente, para o lado de Seu Damião. Quando estava agachado, colocando o pneu no lugar, sentiu a ponta de ferro encostada na sua nuca. Conseguiu avistar sua chave de fenda, a maior. O passageiro logo mudou de voz, como se tivesse rouco. Pediu-lhe que não tivesse medo nem reagisse. Queria que Seu Damião lhe passasse todo o dinheiro e continuasse caminho em frente. Caso contrário, o dono do chevrolet iria se encontrar com as almas do outro mundo.

Ao perceber que a morte havia chegado de surpresa, Seu Damião não pensou duas vezes. Preferiu arriscar a própria vida. No silêncio do coração, invocou a ajuda de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, mãe de Jesus. E sabe o que aconteceu? Num movimento rápido, como relâmpago no céu, Seu Damião quebrou a perna do assaltante, de uma só lapada, com a manivela do macaco, que se achava no meio de suas pernas. “Foi uma dor daquelas de se mijar”, alteou a voz Seu Damião, acompanhado de gargalhada. Levantando-se do banco, completou: “Vi o cabra se amuquecar bem direitinho no chão da estrada e ouvi a gemedeira dele se espalhando pelo ar”. 

- Zé Vital, intrometeu-se o barbeiro, batendo com a tesoura no pente, escute o que foi que Seu Damião fez. É da gente num creiar.

Pedindo calma a Zé-evangélico com a mão direita, Seu Damião continuou a narrar para Zé Vital que teve muito dó do desgraçado. Chegou a levá-lo ao hospital de Cabrobó. Até se combinou com o enfermo quando ele aparecer diante do atendente do hospital. Era pra dizer que ele  estava à beira da estrada, de perna quebrada, sozinho, gemendo de dor. Havia sido vítima de ladrões, que o saquearam, fugiram com a sua feira, deixando-o, ainda, de perna quebrada.

- Consegui internar o infeliz, amigo. E esperei o médico encanar a perna dele.

- Seu Damião é um bom samaritano, Zé Vital. - meteu-se Zé-evangélico, com a tesoura aberta, apontada para Seu Damião. - Já convidei ele pra se converter na nossa Congregação. Mas parece que ele num quer encontrar Jesus.

Seu Damião não deu ouvido para a conversa de Zé-evangélico. Recolocou o chapéu na cabeça, preparando-se para ir embora. Mas, ao vê-lo no batente da porta de saída, Zé Vital não se conteve: "Seu Damião, Zé Vital, ainda deixou o bandido livre".

Esfregando a mão direita nos cabelos brancos, Seu Damião concluiu antes de partir: “Tive dó do miserável. Levei ele até sua casa. Dormi lá, tomei café, junto da mulher e a reca de filho. Ainda dei pra ele uns trocado. Fui macho ou num fui?". 

Depois que Seu Damião partiu, Zé Vital e dois rapazes balançaram a cabeça de modo positivo. Zé-evangélico e a sogra mais um senhor com a bíblia no colo, balançaram a cabeça de modo negativo. Mas o rapaz da vez terminou dando a sua opinião: "Quero ver é na hora do aperreio se esses crentes agiam como aquele senhor”. No instante recebeu o troco de Zé-evangélico, ao lhe dizer que não iria mais cortar cabelo porque estava com muita fome.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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