Já-morreu (Dantas de Sousa) - conto

Andava eu pela Rua Santa Clara, ao meio-dia, observando o mau gosto da frente das casas. As residências apresentavam o mesmo desenho e a mesma cor das  fachadas. E a rua começou a me entediar, já que ela não havia mais a criatividade dos moradores da minha adolescência. No entanto, para minha surpresa, avistei, quase no último quarteirão da rua, Já-morreu. Diante dele, um menino irrequieto. 

Sentava-se Já-morreu encostado na grade de uma larga residência. Ao me aproximar, percebi que Já-morreu almoçava, com as mãos. Estava obeso. Ao seu lado, a vassoura de piaçava descansava. Diante dele, o menino o insultava, chamando-o de Bonitim. Logo perguntei ao menino por que ele o chamava daquele nome. Segundo o adolescente me revelou, o Bonitim era um gari da Prefeitura e acostumado a de-comer ali. Ainda insisti ao menino o porquê do apelido. E eis a resposta: o maluco era parecido com o personagem da tevê, chamado Bonitim.

Tentei explicar ao menino, e a dois outros que se aproximaram de nós, que o homem de cabeça grande, bem alto e pernas e mãos compridas, era apelidado, no meu tempo de  adolescente, de Já-morreu. Ao ouvir isso, os três caíram na risadaria. Um dos meninos, para ter a certeza, começou a gritar: Já-morreu. Para minha estranheza, ele não se importou com a insistência do menino, não parou de comer. E os meninos riram de mim, como se eu fosse adulto mentiroso. Resolvi, então, seguir meu caminho, pensando naquele ser decrépito, inofensivo.

Na verdade, não se sabia o nome verdadeiro de Já-morreu nem o porquê daquele apelido. Na Praça Padre Cícero, todos o tratavam de Já-morreu. Ele não se zangava, atendia a todos de modo educado. Já-morreu parecia um pendão de cana, ou o inseto mané-magro. Tinha a cara cheia de espinhas, cabelo liso e escorrido pela testa, duas orelhas-de-abano, pés de pato dentro da alpercata de solado grosso de pneu. Andava vestido num só estilo: camisão azul de brim a bater nos joelhos, mangas quase cobrindo os dedos grandes e magros. Carregava pendurada ao seu ombro direito, batendo em seu joelho direito enquanto andava, a bolsa de couro cru. Perambulava da Praça Padre Cícero para a Matriz de Nossa Senhora das Dores. Não tInha onde morar. Pedia esmolas e fazia mandado.

Certa ocasião, enquanto eu me achava entre motoristas do ponto de táxi da Praça Padre Cícero, do lado da Rua do Cruzeiro, um motorista mais velho que os outros apontou, com o dedo indicador para Já-morreu, sentado cochilando na coluna da hora, situada no centro da praça. Para minha surpresa, ele começou a relatar que aquele maluco era uma espécie de criatura muito estranha. Ele havia morrido, mas que tinha voltado a viver.

Levantou o motorista a curiosidade dos presentes. Logo, ele foi forçado a contar o que houve. E o taxista prendeu a todos com esta revelação: "Os que viram já morreram. Eu só soube da história porque Juarez me contou antes de morrer".  

Deu-se assim. Um colega taxista tinha uma amante que morava na Rua São Vicente, de lado do cemitério do Socorro. Certa madrugada, ele voltava da casa da amante. Como chovia grosso, ele resolveu passar a chuva no necrotério, recém-inaugurado pela prefeitura. O local se situava ao lado da capela do Socorro e na frente do cemitério amurado. Ainda nem havia pregado o portão de ferro no necrotério.

Ao entrar no recinto de pouca claridade, o taxista deparou-se com um homem estirado na bancada de cimento, a do lado esquerdo do necrotério. A primeira reação dele, a fim de passar o medo, foi a de rezar em pé, na coberta antes do vão da porta, e de costas para o defunto que, para ele, foi deixado ali. Iniciou, em voz alta, o Pai-nosso. Mas não rezou nem todo. O defunto, sem ele ao menos imaginar, levantou-se de vez e, de voz braba, reclamou-lhe que queria continuar dormindo no silêncio. Ainda, ameaçou-lhe que, se não parasse com aquele bodejado, ele iria mandar pra caixa-prego, ou pro inferno. 

Devido à desabalada corrida do taxista até a Praça Padre Cícero, para avisar aos colegas taxistas que se achava, no necrotério, um defunto vivo, falando e andando, todos os motoristas do posto resolveram ir até lá. E daquele instante em diante, o maluco Né se conformou em ser Já-morreu. Assim como Bonitim.  

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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