Pouco tempo depois do meu
retorno para Juazeiro do Norte, eu me deparei, numa gráfica do centro da cidade,
com Manoel Caboclo - dono de pequena gráfica, cordelista, autor de almanaque e
de horóscopo. Vestia-se como antes: roupa branca e alpercatas brancas. Cabelos
brancos e ainda magro. Alegrou-se, por eu ser filho de grande amigo seu, até
compadre seu, além de comprador de almanaque anual, de folhetos em verso.
Convidou-me, então, a ir visitá-lo, para bebermos o café de sua mulher, na
mesma casa verde da Rua Todos os Santos. Assim, pouco tempo depois, bati à sua
porta. E, na despedida, no portão da casa, Manuel Caboclo prometeu-me fazer meu
horóscopo e marcou o dia de me entregar.
Quando me dirigi à casa
de Manoel Caboclo, a fim de receber o meu horóscopo, assustei-me ao vê-lo de
perna engessada. Confessou-me logo: “Não foi de velhice, não. Inventei de
amarrar minha rede. Subi na estante. Quando caí, a estante veio com o que tinha
dentro e acertou essa minha perna. Mas vai passar, vai passar, com as graças de
Deus”.
Sorri com o seu “vai
passar”. E enquanto a senhora dele preparava o café, Manoel Caboclo me mostrou um
pouco do seu Almanaque, em preparo. Ele me explicou previsões para o ano de
1988. (A publicação reunia conjunto de conhecimentos populares: horóscopo,
previsões do tempo, medicina popular, etc.). Li: o próximo inverno não ia vingar.
Logo, certeza de seca verde.
Atraído pela leitura do
almanaque, e bebendo o café da sua senhora, não me apercebi da chegada do homem
de chapéu marrom, sacola branca de pano na mão, rosto sério. Ao se deparar
comigo, na sala de visitas, mostrou-se desconfiado. Precisou Manoel Caboclo
explicar-lhe que eu era um rapaz “de estudo e amigo da casa”. Isso fez o homem
se sentar tranquilo. Ele se chamava João Ferreira. Serviu-se do café. Antes de
terminar de bebê-lo, olhando nos olhos de Manoel Caboclo, alertou-o:
- Essa é a última vez que
venho a Juazeiro.
João Ferreira passou a
relatar para Manoel Caboclo que, como já se encontrava velho, cansado,
aposentado, não mais viria a Juazeiro do Norte a fim de comprar os almanaques e
os folhetos, além de outras mercadorias. Também não iria mais trazer de Oeiras,
no Piauí, raízes e cascas de pau para vendê-las aos feirantes do Mercado Central.
Já completara seus trinta e oito anos de viagens e quase sete por ano. Sem
olhar para mim, declarou para Manuel Caboclo:
- Eu queria, Manuel
Caboclo, contar pra você um segredo. E já não posso ocultar ele.
Fiz menção de me
despedir, porém Manoel Caboclo explicou de novo ao João Ferreira que eu era
como um da família. Assim, ao se convencer disso, ele começou a contar seu segredo.
Nunca pensei de ouvir história tão surpreendente que o próprio Manoel Caboclo,
ao final, exclamou um “Como que é mesmo, João?”.
João Ferreira procurou
nos falar de novo seu segredo: Lampião, que era seu irmão, antes de partir de
Juazeiro do Norte, deixara seu filho, que havia tido com Maria Bonita, aos
cuidados de uma senhora (Ele não se lembrou do nome da mulher). Mas sabia que
era dona de um “café”, de um “ponto”, de um local no Mercado Central de
Juazeiro do Norte.
- O menino, Manuel
Caboclo, meu sobrinho, se ele ainda vive, é Filho do meu irmão Virgulino. E eu,
pra provar que ele é mesmo… Ah, se eu chegasse a ver o menino aqui.
Naquele momento, como
inspirado por Deus, Manoel Caboclo gritou o nome do empregado da gráfica.
Mandou-o ir, depressa, ao ponto de táxi, na calçada da caixa d’água (onde se
localiza o escritório central da Cagece). Chegando lá, dissesse para
João-peitudo que Manoel Caboclo queria falar com ele urgente.
Não demorou meia-hora,
pois o empregado retornou, trazendo João-peitudo (continuava João-peitudo a
mesma figura bonita que eu o achava). Mas logo que João-peitudo entrou porta
adentro, desconfiado do convite de Manoel Caboclo, João Ferreira se levantou,
com esforço, da cadeira de balanço. Agarrando a orelha direita de João-peitudo,
se explicou, entusiasmado, para todos nós da sala:
- Achei uma prova. A da
orelha dele. Meu irmão fez nele de faca, pra todo o mundo saber a verdade: esse
rapaz é filho dele com Maria. Antes dela morrer, me disse, num raio de conversa,
passando no Pernambuco, que eu não perdesse de vista seu menino. E a graça do
menino sempre ia ser João.
De súbito, João Ferreira,
ainda em pé, pediu a João-peitudo, com educação, para que retirasse a camisa. Na
pele que encobria o rim direito, encontrou João Ferreira outra marca de faca.
- Agora sei, é ele, Manoel
Caboclo. Meu sobrinho, Manuel Caboclo. Pode crear. - e chorava forte João
Ferreira, abraçado ao corpo de João-peitudo. - Meu São Francisco das Chagas do
Canindé, agora vou poder ir em paz pro outro mundo. Lá no bom repouso de Maria
(olhando para o rosto de João-peitudo), a tua mãe te vê que eu consegui achar
tu, sangue dela com Virgulino, o seu pai verdadeiro.
Para arrefecer a emoção daquele momento, a mulher de Manoel Caboclo nos serviu outra rodada de café. Bebi-o apressado, saindo de lá em seguida. Nem recebi meu horóscopo. Manoel Caboclo faleceu quatro meses e vinte dias, após minha visita a sua casa.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.