Chamou a atenção do advogado José Pedro Couto Machado a saída de uma mulher, vestida de preto, bonitona, boa de corpo, um partidão, no começo da noite, enquanto ele subia para o escritório do seu colega advogado Antônio Teles de Menezes. Após fechar a porta do escritório, Coutinho soltou o gracejo picante e insinuou mais um caso sexual do amigo com uma cliente.
- Calma, Coutinho, rebateu-lhe Menezes. - Liduína não é quem você insinua.
Para se disfarçar da indiscrição, Coutinho buscou saber como Liduína, na melhor fase da idade, ficara viúva. Assim, ao vê-lo vindo com as castanhas, Menezes lhe explicou que sentia dó de Liduína. Admirava-a, sobretudo, ao vê-la, às quintas-feiras, chegar pontualmente às seis da manhã em sua casa. Servia-se do café, em silêncio, na cozinha. Depois se dirigia ao quintal, para começar a lavagem da roupa. Após o almoço, agarrava-se ao ferro de passar. O trabalho árduo a enfadava, porém ela não perdia o tímido sorriso. E admoestou o colega: "A vida dela é triste, Coutinho. Por isso, não a julgue da maneira que imaginou".
As palavras do colega deixaram Coutinho de olhos vagando pelo escritório. Mas, num instante, ele fixou os olhos,
insistindo a Menezes lhe falar sobre a vida de Liduína. Assim, como estava querendo ficar mais no escritório, Menezes resolveu abrir a garrafa do vinho
tinto argentino, que lhe presentearam naquele dia do seu aniversário natalício.
Ainda bem que Coutinho era o único colega seu de profissão que não apreciava
bebida alcoólica. Mas, por outro lado, não podia ver uma mulher que se
esquentava todo para conquistá-la. Ele próprio se gabava de ser exímio
conquistador de mulheres, apesar de se expressar de modo tosco, de mãos dadas com a linguagem inculta.
Após abrir a garrafa e provar demoradamente o primeiro gole do tinto seco, treze graus, Menezes decidiu um bate-papo com Coutinho. Saiu, então, a explicar ao colega que, após ano e meio de convivência com Liduína, obteve a primeira informação da vida conjugal dela. Sua esposa, revelou-lhe, numa certa hora de almoço, ter a lavadeira conhecido o marido Zé Valdeir numa romaria dele, no mês de novembro, em Juazeiro do Norte. Depois de cinco meses de namoro, os dois se casaram e resolveram morar em Limoeiro do Norte, município cearense. Lá, o marido arranjou emprego na agricultura irrigada. Mas a felicidade dos dois só durou meia década. Não servindo mais para o trabalho, despediram-no.
A partir da declaração da esposa, Menezes procurou conversar com Liduína. Quis descobrir por que ela vivia naquela vida sofrida, a lavar, a passar roupa, de casa em casa, sem descanso. E, numa quinta-feira, após o almoço, ao vê-la almoçar na cozinha, chorando e aflita, decidiu investigá-la. Mesmo envergonhada, a mulher desabafou-se. Ela sentia que Zé Valdeir estava próximo da morte. A aposentadoria dele não saía. E isso deixava o marido mais doente. Ela tinha dó dele sem poder sair de casa, e não sabia mais que fazer.
Liduína ainda lhe confessou que ela e o marido já se cansaram de tentar na Justiça o direito de Zé Valdeir se aposentar. Mas a carteira de trabalho dele não tinha a
contratação cancelada pela fazenda contratante. Ainda chegaram a receber, em
Limoeiro do Norte, com atraso, o Auxílio Doença da Previdência Social. Para
não passarem fome, resolveram mudar de cidade, morando numa casinha do pai
dela em Juazeiro do Norte. Só que não conseguiam ainda ajeitar o problema.
- Estava mesmo, Coutinho, na estaca zero. Nem a Justiça, nem ninguém, tomava posição. Os trabalhadores de Limoeiro do Norte mantinham-se em silêncio.
Diante disso, Menezes interessou-se para defender Liduína. Perguntou-lhe o motivo que levara o marido a chegar à situação desfavorável. Adiantou que poderia ajudá-los, se fosse o caso, como seu advogado. Contudo, Liduína mostrou a Menezes não acreditar mais a quem apelar.
Ao vê-la desenganada, ousou arrancar-lhe mais informações. Fez-se de forte ao ouvir a tragédia de Zé Valdeir: o marido havia perdido a perna direita, devido à infecção começada nos dedos do pé e que se espalhara para a perna. Num intervalo de poucos meses, Zé Valdeir se submetera a seis cirurgias. Cinco para cada dedo do pé e a última para retirar a perna. Segundo Liduína, a empresa que o marido trabalhava alegou que ele era diabético, e dum simples ferimento causara o problema. Entretanto, o exame de sangue comprovou que ele nunca contraíra a doença. Até um dos médicos que cortara a perna de Zé Valdeir, confidenciou a Liduína que o marido havia sido infectado por uma bactéria, encontrada nos agrotóxicos, quando o funcionário borrifava na plantação.
Mesmo os médicos afirmando que o mal
de Zé Valdeir foi causado por substância contida nos agrotóxicos, mesmo a
Justiça lhe dando ganho de causa indenizatória, ao comprovar sua ausência do
trabalho por conta da internação, inclusive com atestado médico, mesmo assim,
segundo Liduína, a empresa negou qualquer responsabilidade no caso. Para a
mulher, era costume dos médicos das empresas esconderem os laudos médicos de
doenças de trabalho, com medo de caírem nas mãos da fiscalização.
- Quando chegava fiscalização, Coutinho, mandavam os
trabalhadores se esconderem nas plantações. Muitos de lá reclamavam, tempo
todo, de tontura, de desmaio. Tinha caso de anemia, de fraqueza, de doença,
como hepatite. Era triste ver aparecendo, na fazenda onde eles moravam, caminhões de longe e comerciantes de perto, nas caminhonetes,
levando as frutas. Todos sabiam que tudo aquilo estava contaminado. E mais: o povo das cidades de perto tinha medo de beber daquelas águas.
Angustiado, Menezes acertou-lhe resolver gratuitamente o problema da aposentadoria
do marido. Liduína, mesmo em dúvida, aceitou. Entretanto, nem o advogado, nem Liduína,
esperavam por isto: Zé Valdeir precisou com urgência de se internar. O
médico detectou que o sistema imunológico dele achava-se bastante afetado,
registrando expressiva queda do número de hemácias no sangue. O estado de saúde
dele piorou. Só deu tempo de o casal receber a primeira quantia da
aposentadoria do INSS.
- E o marido dela morreu? -
perguntou Coutinho.
Após devorar, de vez, duas taças de vinho, a fim de ir logo para casa, pôs fim à conversa. Liduína, como gratidão, encontrou a forma de agradecer a Menezes à sua ajuda: no dia do seu aniversário, ela lhe presenteava uma garrafa de vinho tinto seco, treze graus. E, naquela vinda ao seu escritório, quando Coutinho se deparou com ela saindo do seu escritório, Liduína viera lhe entregar a terceira garrafa, dar-lhe o abraço fraternal e lhe repetir que nunca deixaria de rezar pela salvação de sua alma.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.