Literatura do Folclore: André, o Felizardo - conto

Um camponês muito trabalhador tinha dois filhos: João Nicolau e André, o Felizardo. João Nicolau, o mais velho dos dois, era um sujeito incompreensível, intratável e, ainda, mais avarento e ávido do que o geral do povo da Terra do Norte. O segundo, André Felizardo, era brincalhão, sempre bem humorado e, não obstante, se o visse em situações amargas, ele sempre afirmava que era feliz. Se a águia em defesa do ninho lhe feria a cabeça, fazendo-lhe jorrar o sangue, ele repetia que era um felizardo, por ele levar para casa apenas um filhote de águia. Se o seu barco naufragava, o que às vezes lhe sucedia e os companheiros o encontravam completamente extenuado pelo frio e pelo esforço, ouviam isso dele:

- Olhem que até me saí muito bem. Sou um sujeito de sorte, não há dúvida.

Quando o velho camponês morreu, eram os dois filhos já adultos. Assim, tendo passado algum tempo da morte do pai, foram certo dia os dois irmãos aos bancos de areia, para buscarem redes de pesca. O outono ia adiantado. André Felizardo levava a espingarda companheira constante. João Nicolau não falou muito durante a caminhada, porém,  em compensação, refletiu. Foi somente ao cair da noite que resolveram regressar.

- Escute, André Felizardo, sabe de uma coisa? Pois esta noite teremos um péssimo tempo. - disse-lhe João Nicolau, olhando para o mar. - Acho melhor ficarmos nós dois aqui até amanhã.

- Não vai fazer mau tempo, João Nicolau. As Sete Irmãs não estão usando o gorro de neblina, pode ficar sossegado.

João Nicolau queixou-se, então, de um extremo cansaço. Finalmente, após discutirem um pouco, decidiram passar a noite no lugar. Mas, quando André Felizardo acordou, estava sozinho. Não viu nem o irmão, nem o barco, a não ser quando galgou o ponto mais elevado da ilha. Aí, distinguiu o irmão já bem distante, como gaivota que voasse para a terra firme. André não compreendeu, de relance, a verdadeira situação, já que dispunha ele de boa quantidade de comida, de excelente leite e, além do mais, contava ele com a valiosa espingarda. Não ficou pensando muito no que lhe sucedera. E resmungou para si mesmo: “Meu irmão voltará ao cair da noite. Eu tenho certeza”. E começou a comer e a falar para si mesmo: Tolo, André, quem desanima enquanto ainda tem o que comer.

Chegou a noite, mas o irmão não voltou. João Nicolau foi esperado dia após dia, semana após semana. Finalmente, André compreendeu que fora abandonado na ilha solitária, para ser privado da parte da herança que lhe cabia. Era verdadeiramente o que ele verificava. Entretanto, João Nicolau, ao pisar em terra firme, afundou o barco e contou aos habitantes que André Felizardo morrera afogado no mar.

Mas André não desanimou. Passou a recolher madeira na praia, matava aves marítimas e procurava conchas e raízes. Logrou construir uma jangada e começou a pescar. Uma vez, estando a trabalhar, chamou-lhe a atenção um buraco na areia. Parecia a marca da proa de um grande barco de um país do norte. André pensou que os perigos estavam terminados, pois ouvira muitas vezes dizerem que o povo do mar tinha lá a sua morada.

- Graças a Deus pela companhia. - exclamou André. - Isso é exatamente o que estou precisando. Sim, repito, sou um sujeito de sorte.

Passou o outono. Um dia, André viu no mar um barco. Amarrando um pedaço de pau um trapo, agitou-o. Mas, no mesmo instante, os navegantes, atirando-se aos remos, trataram de fugir, acreditando eles haver na ilha duendes perigosos.

Quando chegou á véspera do Natal, André ouviu, proveniente do alto mar, uma música. E avistou uma luz que vinha de um barco do País do Norte. No entanto, não vira nunca semelhante barco. Tinha ele uma vela incrivelmente grande, aparentemente de seda, e um cordame que parecia feito de aço. Tudo naquele barco era bonito e delicado, como poderia exigir o mais severo nórdico. Os tripulantes eram gente pequena, usavam trajes azuis no leme. Uma jovem, enfeitada como noiva, exibia luxuosa veste digna de rainha. Tinha ela na cabeça uma coroa. André verificou que era um ente realmente humano, por ser muito maior e mais bela do que o povo do mar. E teve a impressão de que nunca vira criatura tão formosa.

O barco rumou para a terra em que se achava André. Este correu para a cabana que o abrigava. Retirou da parede a espingarda e rumou para o celeiro, onde se ocultou para ver o que se passaria na cabana. Amontoou-se gente na cabana, e o número ia crescendo. As paredes começaram a crepitar, a recuar. E a morada foi tornando-se tão esplêndida que não era possível haver negociante que a possuísse maior nem mais linda. Era quase um palácio real. Nas mesas, surgiram as mais deliciosas iguarias. Toda a baixela e demais utensílios eram de prata e ouro. Os intrusos, depois de comerem, começaram a dançar. Ao ruído das danças, André, escapulindo por uma janelinha do teto, correu para o barco. Lá, atirou no barco com espingarda. Com a faca, gravou uma cruz na madeira. Quando voltou à casa, as danças iam animadíssimas. Tudo dançava: mesas, bancos, cadeiras. Quem não dançava era a noiva. Sentada como simples espectadora, ela enxotou o noivo quando ele foi tirá-la para dançar. Nenhum dos intrusos cuidava de interromper o folguedo. Os músicos não descansavam e continuavam a tocar. Trocavam de mão quando já estavam se cansando. E não paravam de marcar o compasso com o pé. Todos estavam banhados de suor. André, percebendo que também começava a ter vontade de dançar, pensou: “É melhor começar a dar tiros se não acabo sendo expulso de minha propriedade”. Pegando a espingarda, enfiou-a pela janela e atirou. No mesmo instante da detonação, todos os duendes saíram precipitadamente. E eles, notando que o barco estava firmemente ancorado, por feitiço, entraram se queixando num buraco da montanha. Quanto aos objetos de ouro e prata, além da noiva, permaneceram na cabana. E, quando viu André diante dela, nem se assombrou. Começou-lhe a contar a sua história: por obra de encantamento, ela fora levada, quando ainda criança para a montanha. Sua mão, indo certa vez ordenhar as vacas, levara-a em sua companhia. E, ao ter que regressar para casa, por um instante havia dito à filha que poderia comer algumas bagas, porém que a filha teria de, antes de comê-las, cantar por três vezes a estrofe: Como de zimbro bagas azuis,/ tendo por cima a cruz de Jesus. / Como de murla bagas vermelhas, / tendo a Paixão e a Morte de Cristo.

 Diante da quantidade de bagas que se deparara, a filha se esquecera do que deveria dizer. Aí, por encantamento, fora levada para a montanha. E lá ela nada sofreu, a não ser a perda da parte superior do dedinho esquerdo. Os duendes a tratavam muito bem, mas parecia-lhe que nem tudo sucedia como deveria suceder. Era como se alguma coisa os assustasse constantemente. Só que ela foi importunada pelo duende que lhe havia sido destinada por noivo.

André, ao saber quem era a mãe da jovem, reconheceu nela uma parenta. Dali em diante, ele e a jovem tornaram-se bons amigos. André pôde afirmar realmente que era um felizardo. Apoderando-se do barco e de todo ouro e prata deixados na cabana, André, o Felizardo, e a jovem voltaram para casa. E ele tornou-se muito mais importante que o irmão.

João Nicolau, desconfiado da procedência da enorme riqueza do irmão, tomou-se de inveja. Sabia que os gigantes e duendes quase sempre saem na noite de Natal. Por isso, rumou para os bancos de areia. E avistou um fogo, ou uma luz, ou um espécie de vagalumes. Quando se aproximou, ouviu chapinhar terríveis uivos e gritos penetrantes. Ao mesmo tempo, penetrou-lhe nas ventas cheiro de lodo e algas. Assustado, correu para a cabana, de onde pôde ver, na praia, os gigantes. Estavam todos vestidos de peles, tinham botas e enormes luvas, que pendiam até o chão. Em lugar de cabeça e cabelos, havia monte de algas. Quando surgiram na praia, havia atrás deles uma fosforescência: sacudiam-se e, em torno, só se viam centelhas. Vendo-os, João Nicolau correu para o celeiro, como fizera o irmão. Os duendes levaram uma grande pedra para dentro da cabana e começaram a bater nelas as luvas. Ao mesmo tempo, davam tais gritos que o sangue de João Nicolau se gelou nas veias. De repente, um deles espirrou na cinza do fogão para avivar o fogo, enquanto os outros traziam lenha. A fumaça e o calor quase mataram o pobre João Nicolau. Para readquirir o fôlego e respirar ar fresco, João Nicolau tentou sair pela janelinha do teto. Mas, sendo muito mais corpulento que o irmão, ficou preso, metade fora, metade dentro. Aterrorizado, gritou. Mas os duendes gritaram ainda mais alto. Quando por fim o galo cantou, anunciando a vinda do dia, os duendes desapareceram. E João Nicolau ficou livre, voltou para casa, porém enlouqueceu.

Desde então, pôde se ouvir, nos celeiros onde João Nicolau esteve, o mesmo grito frio e lúgubre dos duendes do norte. Antes de morrer, entretanto, João Nicolau conseguiu recobrar a lucidez. E foi sepultado em terra cristã. Desde então, ninguém jamais tornou a pisar os bancos de areia, que desapareceram. Quanto ao povo do mar, rumaram para outra parte. E assim, André Felizardo continuou a viver feliz. Não havia barco que realizasse viagens mais venturosas que o seu. Teve muitos filhos, todos laboriosos, mas todos privados da parte superior do dedinho esquerdo.

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