Era uma vez, um homem que tinha três filhos. Como era muito pobre, tornou-se pescador. Estando ele à beira do rio, clamando e se lamentando, ouviu uma voz a lhe perguntar:
- O que tem você, filho, que tanto chora?
O pescador lhe respondeu:
- É que, desde cedo, eu estou aqui. E, ainda, não pesquei nenhum peixinho, para alimentar minha família.
A voz, então, lhe disse:
- Se me trouxer o seu filho mais velho, lhe darei peixe e dinheiro.
O velho, mesmo a contragosto, aceitou a troca. E, assim que puxou a tarrafa, ela estava abarrotada de peixe e dinheiro.
Ao chegar à casa dele, e vendo o velho com tantos peixes e dinheiro, todos ficaram alegres. Mas desconfiaram e quiseram saber como o velho conseguiu, de uma hora para outra, aquela riqueza. Então, ele explicou tudo á sua família:
- Há um lado bom, e um lado ruim. Sabe por quê? Porque, em troca de tudo isso, prometi a uma voz que lhe daria o meu filho mais velho.
O filho mais velho, ouvindo aquilo, protestou, furioso:
- Vá você, se quiser. Pois eu não prometi nada a essa tal voz.
No outro dia, bem cedinho, o pescador foi para a beira do rio, numa tristeza medonha. Nisso, a voz, que já sabia o que acontecera, lhe disse:
- Dessa vez passa. Mas, desde que me traga o seu filho do meio. Em troca, você terá peixe e dinheiro.
O velho concordou. E, quando puxou a tarrafa, ela, mais uma vez, viera cheinha de peixe e de dinheiro.
Chegando a sua casa, todos ficaram muito felizes. Mas, quando o pai explicou ao filho do meio o trato feito com a voz, o rapaz também esbravejou:
- Quem fez seus negócios que salve as suas contas. Eu mesmo é que não me comprometi com ninguém.
O velho passou o resto do dia muito triste. Na manhã seguinte, no rio, explicou à voz a ingratidão do filho do meio. Desta vez, a voz fez mais uma proposta ao velho:
- Até agora fui paciente. Mas, agora, se você não me trouxer o seu filho mais novo, eu vou buscá-lo.
Agora, pode puxar a tarrafa, que ela está entupida de peixe e dinheiro. E não foi que daquela vez estava mais? Assim, com o apurado nas costas, o velho foi para casa. Lá, de cara, encontrou o seu filho mais novo, que se chamava Belisfronte. Aí, menino, quando o pai lhe explicou a situação, disse-lhe:
- Pode deixar, meu pai, que eu vou cumprir o trato feito pelo senhor.
Mal havia amanhecido, foram os dois para o rio, onde ouviram a voz lhe dizerem:
- Feche os olhos, Belisfronte, e grude no meu pescoço.
Assim, Belisfronte o fez. Quando abriu os olhos, ele estava num palácio, no fundo do mar, que era a coisa mais linda do mundo. Lá, não lhe faltava nada: havia uma mesa sempre posta, na hora das refeições. Um vulto o acompanhava, mas ele não conseguia divisar a sua imagem. Só via a comida sumindo no ar, o que o levava a crer que alguém partilhava a mesa.
À noite, quando ia dormir, Belisfronte percebia que alguém ressonava a seu lado. E, nessa vida, passaram-se sete anos, com o rapaz, a cada dia, sendo mais apertado pela saudade da família.
Um dia, ele foi pedir à voz que lhe consentisse ir visitar os pais. Ela relutou, relutou, mas lhe consentiu, desde que, em sua casa, não ouvisse nenhum conselho da sua família. E ele prometeu a voz que não o faria. E, assim, foi liberado para passar alguns dias com os seus.
Quando Belisfronte chegou a sua casa, todos ficaram muito alegres em vê-lo vivo e com saúde. O moço, então, contou à mãe onde e com quem vivia, desde o dia em que seu pai fez o trato com a voz. Ele narrou a alegria de viver no meio de tanto luxo e fartura. Mas sentia a tristeza de não ver essa sua companheira.
No dia de Belisfronte retornar para o seu lugar, a sua mãe lhe deu um trancelim de cera e mais alguns fósforos. Também o aconselhou a só usá-los à noite, quando a sua companheira adormecesse. E, para ocultar os objetos, a mãe costurou um bolso dentro da calça do filho.
Na beira do rio, como da outra vez, ele fechou os olhos. E, quando os abriu, já se achava no lindo palácio. Então, narrou à voz tudo sobre a viagem, menos a parte do conselho da mãe.
Quando anoiteceu, assim que ele ouviu o ressono da companheira, que dormia um sono pesado, acendeu o trancelim de cera e aproximou-o do rosto dela. Foi aí que Belisfronte percebeu que era a mais linda moça que um dia já vira. Como aquela moça, era impossível de se achar. E ele ficou tão atarantado, que não percebeu que a cera estava derretendo. E um pingo caiu no rosto da moça, que se acordou na hora.
- Oh, Belisfronte ingrato. Você dobrou meus tormentos por mais sete anos. - disse-lhe a moça, já desaparecendo, sem que ele pudesse fazer nada.
Num segundo, o palácio se evaporou, escurecendo-se tudo. E Belisfronte se viu no meio do mar, agarrado a uma balsa velha.
Desesperando, começou a lamentar a sua sorte. De repente, apareceu diante dele um velho, caminhando na água, como se estivesse na terra. O velho, que era são Simão, ordenou ao moço que o seguisse. E foi o que ele fez.
Caminharam, caminharam, até que o mar ficou para trás. Quando Belisfronte procurou o velho, para agradecer-lhe a sua boa ação, são Simão já tinha sumido. Então, Belisfronte prosseguiu andando. E, bem à frente, encontrou um ladrão, com uma bicheira enorme. O leão lhe pediu que o socorresse. Aí, o rapaz, mesmo morto de medo, arrancou umas ervas e espremeu o leite sobre a bicheira, curando-o. O leão, em sinal de agradecimentos, disse-lhe:
- Moço, quando estiver em seus apertos, basta dizer: “Valha-me o Rei dos Leões!”. E eu vou lhe socorrer.
Belisfronte seguiu andando. Mais à frente, sentiu um mau cheiro forte. Aí, viu um bocadão de formigas e uns urubus, lutando pela carcaça de uma vaca. Tanto as formigas quanto os urubus pediram a sua intercessão. Apresentou-lhe as suas razões para reclamar aquele “prêmio”.
Ele, então, ajudou-os da seguinte maneira: deu as carnes para os urubus, e os ossos para as formigas, que nunca mais brigaram. E, em sinal de agradecimento, um urubu, o maior do bando, disse-lhe:
- Moço, quando você estiver em seus apertos, basta dizer: “Valha-me o Rei dos Urubus!”, que eu irei ajudá-lo.
Da mesma forma, uma formiguinha também lhe disse:
- Moço, quando você estiver em seus apertos, basta dizer: “Valha-me o Rei das formiguinhas!”, que eu irei lhe socorrer.
Belisfronte continuou andando. Chegou a uma cidade, onde, à beira de uma fonte, uma velhinha lhe informou que a amada dele, que se chama Bela, estava prisioneira na torre do castelo, por ordem de um rei muito soberbo, que queria casar com ela. Aí, ele não contou até três. Foi para perto do castelo e ficou o dia inteiro, matutando um jeito de falar com a moça.
Já de noite, lembrou-se da promessa do urubu e gritou: -Valha-me o Rei dos Urubus!
Na mesma hora, chegou aquele urubuzão, que lhe perguntou:
- O que você quer comigo, moço? - Que me ponha no alto daquela torre.
E se montou na corcunda do urubu, que o deixou no alto da torre. Mas, lá em cima, não achando meios de entrar, tornou a gritar: - Valha-me o Rei das Formigas!
A formiguinha já chegou lhe perguntando:
- O que você quer comigo, moço?
- Que você me ponha no quarto da princesa Bela.
Belisfronte, então, se transformou numa formiguinha. Entrou no quarto por uma rachadura e, em seguida, desceu. Lá em baixo, virou novamente um rapaz. E foi em direção à cama da princesa, que se acordou.
- Bela, Bela, sou eu, Belisfronte. Não se lembra mais de mim?
A moça, que estava debaixo de um encanto poderoso, não o reconheceu. E danou-se a gritar pelo rei, que correu em seu socorro, com um candeeiro na mão, perguntando-lhe a razão de tanto alarido. Não viu nem sinal do rapaz, que virou formiga e se enfiou debaixo da cama.
Depois que o rei saiu, a formiguinha subiu pela parede, virou gente, chamou o urubu e desceu da torre.
Na segunda noite, tudo transcorreu como na primeira. E o rapaz ficou bastante contrariado, pois Bela continuava totalmente esquecida dele.
Ora, na terceira noite, Belisfronte chamou o Rei dos Urubus, que lhe pôs no alto de torre. Lá, ele foi de novo em auxílio da princesa. Virado em formiga, o moço foi ao encontro de sua amada. Embaixo, de volta à antiga forma, ele foi acordar a moça dizendo-lhe:
- Bela, Bela, não se lembra mesmo de mim? Sou Belisfronte, seu amado. Você não sabe os apertos que passei para chegar até aqui!
Quando Belisfronte disse aquilo, a memória da moça se iluminou, e ela se lembrou dele. Depois de matar a saudade, o rapaz indagou dela se o rei tinha algum segredo. Ele ouviu dizer que, no reino, todos diziam que o rei não podia ser morto, pois sua alma estava fora do corpo. Bela garantiu que, se houvesse algum segredo, ela o descobriria.
E assim se deu: no outro dia, quando o rei foi visitá-la, Bela, se usando de esperteza, começou a perguntar se ele tinha algum segredo. Pois ela, como a sua futura esposa, tinha o direito de o saber. O rei logo ficou desconfiado de tanta gentileza:
- Bela, Bela, você está me falseando.
- Não estou não, rei. Se vai casar comigo, tem de me contar todos os seus segredos.
Assim que ela se referiu ao casamento, o rei se empolgou e lhe revelou todo o seu segredo:
- Minha vida não está em meu corpo, mas em cima daquela serra. - e apontou com a mão. E continuou: - É lá que mora uma serpente muito perigosa, impossível de ser vencida. Dentro da serpente, tem uma caixa de bronze. Dentro da caixa de bronze, tem uma porca. Dentro da porca, tem uma pomba. Dentro da pomba, um ovo. E, dentro do ovo, uma vela. Se alguém conseguir matar a serpente, eu adoeço. Se se quebrar a caixa de bronze e matar a pomba, eu me arruíno. Se se matar a pomba, eu caio de cama. Se se quebrar o ovo e apagar a vela, eu morro.
Bela esperou por Belisfronte, que apareceu à noite, na hora combinada. Ela, então, contou-lhe detalhadamente o segredo da vida do rei. Aquilo deixou o rapaz esperançoso e feliz. Prosearam até bem tarde da noite, quando ele se virou em formiga. E se foi embora, garantindo-lhe voltar.
Pela manhã, Belisfronte mirou na direção da serra, que ficava muito longe, e gritou: “Valha-me o Rei dos Urubus!”
Chegou o urubuzão, perguntando-lhe:
- O que você quer comigo, moço?
- Que você me ponha no cume daquela serra.
E subiu nas costas do urubu, que bateu asas. E, em pouco tempo, estava na dita serra. Quando Belisfronte pisou o chão, sentiu a terra tremendo: era a serpente que, percebendo o invasor, vinha acabando com tudo. Vendo-se perdido, o rapaz gritou bem alto: “Valha-me o Rei dos Leões!”.
De repente, apareceram mais de trezentos leões e bem ferozes. O maior de todos encarou Belisfronte e perguntou-lhe:
- O que você quer conosco, moço?
- Que vocês acabem com aquela serpente.
Os leões caíram em cima da bruta e, num abrir e fechar de olhos, a serpente estava morta. Enquanto isso, o rei velho começou a passar mal e reclamou:
- Bela, Bela, minha serpente está em trabalho. Você me falseou.
- Falseei nada, rei.
Quando a serpente foi morta, Belisfronte abriu-lhe a barriga com um punhal e retirou a caixa de bronze, que o Rei dos Leões arrebentou com um só tapa. Aí, a porca, vendo-se livre, tratou de escapulir. Mas o rapaz passou-lhe o cacete na cabeça, matando-a. (Nesse ponto, o rei velho já estava na cama, lamentando-se.). No entanto, ao abrir a barriga da porca, o rapaz se descuidou, e a pombinha ganhou o céu e desapareceu. (Aí, o rei velho teve uma ligeira melhora.) O moço, vendo-se perdido, gritou: “Valha-me o Rei dos Urubus!”
- O que você quer comigo, moço?
A urubuzado se espalhou. Alguns minutos mais tarde, um deles voltava, trazendo a pombinha em suas garras. Belisfronte matou-a, partiu a barriga e retirou o ovo. (Nem precisa dizer que o rei velho já estava nas últimas.). Quando o moço quebrou o ovo e apagou a vela, o rei também se apagou.
Cumprida a missão, o rei dos Urubus levou o moço ao palácio, onde o povo já o esperava em festa. Mas festa mesmo foi a do seu casamento com Bela. Comentaram todos que o tal casamento durou muitos e muitos dias, sendo que os dois ficaram, a partir daquela data, muito felizes na terra, como os anjos no céu.