Literatura do Folclore: Biacão - conto

Havia um pescador que tinha três filhas. Um dia, ele saiu para pescar e, não pegando nenhum peixe, voltou muito zangado para casa.

No dia seguinte, foi a mesma coisa: não pescou nem um peixe “pra remédio”. Quando foi no terceiro dia, depois de tentar pescar durante muito tempo, ele já estava maldizendo a sorte, quando ouviu uma voz a dizer-lhe:

- Se você quiser pescar muito peixe, prometa que me dará a primeira coisa que avistar na porta de sua casa, ao chegar lá.

- Prometo sim. - respondeu o pescador, no mesmo instante lembrando-se de que a primeira coisa que vivia na porta de sua casa era sempre o papagaio, que lá ficava empoleirado em sua gaiola.

Depois disso, começou a pegar peixe em quantidade. Ficou muito satisfeito.

Mas quando voltou para casa, a primeira coisa que viu foi a sua filha mais velha, a quem ele estimava muito, em pé, à porta da rua. O pobre homem ficou muito triste, num canto de casa. A filha, ao vê-lo daquele jeito, e vendo que o pai pescara muito, não havendo motivo, portanto, para tal tristeza, insistiu muito para que o pai lhe dissesse o que havia acontecido. O pescador contou-lhe o que se passara com ele no mar. E a moça lhe disse:

- Não faz mal, meu pai. Eu vou.

No dia seguinte, quando o pai saiu para a pesca, foi com ele. Ao chegarem, em mar alto, viram uma palma de mão aberta à flor d’água, ao mesmo tempo em que uma voz dizia para a moça:

- Sente-se aqui.

A moça sentou-se, e a mão mergulhou com ela.

Daí por diante, o pescador continuou a apanhar muito peixe, todos os dias.

Pois bem, quando a moça deu acordo de si, estava no fundo do mar, num palácio, que era uma maravilha. Ficou muito contente porque nada lhe faltava: tinha tudo o que era do melhor. Mas, por outro lado, vivia muito triste, porque só via um velho e um vulto. Esse vulto se sentava com ela à mesa e deitava-se com ela na cama.

Depois de muito tempo, a moça pediu ao velho que queria ir ver a sua família, pois estava com muita saudade. O velho disse-lhe que ela podia ir, mas que, quando voltasse, não trouxesse nada da terra para o mar. E, em seguida, levou-a, então, pondo-a na praia.

Foi uma alegria enorme quando ela chegou a sua casa. Contou tudo o que se passava no fundo do mar. Quando disse que, todas as noites, via um vulto deitar-se ao seu lado, mas que não sabia quem era, a mãe aconselhou-a:

- Boba. Leve um pedacinho de vela e uma caixa de fósforos. À noite, acenda para ver quem está ao seu lado.

A moça disse à mãe que não faria aquilo, pois o velho lhe recomendara que ela nada levasse da terra para o mar. A mãe teimou, dizendo-lhe que ela levasse escondidos no sapato, que ninguém veria. E de tanto insistir que a pobre moça concordou com ela.

Quando foi embora e chegou à beira do mar, encontrou a palma da mão. E ouviu a voz, que lhe disse:

- Filha, se traz alguma coisa, jogue-a fora.

Ela respondeu à voz, dizendo que não trazia nada.

A voz então lhe disse:

- Está bem. Como não traz nada, venha. Depois, não se vá arrepender.

A moça sentou-se na palma da mão e só foi dar por si novamente no palácio.

À noite, viu o vulto deitar-se ao seu lado. Passado algum tempo, levantou-se, acendeu o toco de vela e viu, adormecido, um príncipe lindíssimo. Ficou tão admirada com a beleza do rapaz que o toco de vela derreteu-se todo, sem ela perceber. Quando sentiu uma queimadura nos dedos, sacudiu a mão, e um pingo de cera caiu no rosto do rapaz. Então, ele acordou e disse-lhe:

- Ah, ingrata. Você redobrou meu encanto por mais sete anos. Amanhã, eu já ia me desencantar.

E o rapaz ficou passeando no quarto, de cá para lá. A moça acabava-se de tanto chorar. Afinal, o príncipe pediu que abrisse a janela e olhasse para ver se via alguma nuvem. Ela abriu e disse-lhe:

- Vem vindo aí uma nuvem muito escura.

- Ainda não é a hora - respondeu-lhe o príncipe.

Algum tempo depois, tornou a lhe dizer:

- E agora?

Depois de ter olhado ela lhe disse que via uma nuvem cinzenta.

- Ainda não é a hora. -  tornou-lhe a dizer o príncipe.

Depois, mandou-lhe olhar pela terceira vez:

- Vá ver agora.

- Vem vindo uma nuvem branca. - disse-lhe a moça.

- É agora. - exclamou o príncipe.

A nuvem foi chegando, chegando, ficou diante da janela. E o príncipe desapareceu diante dela. Então, o velho entrou no quarto e disse à moça:

- Eu não lhe preveni que não trouxesse nada da terra para o mar? Olhe, vou me transformar num cavalo, e você se vista de homem. Quando alguém perguntar como é o seu nome, diga que é Biacão. Nunca faça nada sem me consultar primeiro.

Assim foi. Ela se vestiu de homem, e o velho transformou-se num cavalo. Biacão montou o cavalo. E os dois saíram mundo a fora. Andaram muito até que foram dar ao palácio de um rei, que era o pai do príncipe que havia desaparecido na nuvem. O cavalo bem que sabia disso, mas nada disse a Biacão.

Biacão subiu as escadas do palácio, bateu as palmas. E, quando a rainha veio ver quem era, Biacão lhe pediu um emprego. A rainha, ao ver aquele mocinho tão bonito, gostou dele. E lhe deu um emprego no palácio.

O filho da rainha, irmão do príncipe encantado, também gostou muito de Biacão. Todos os dias, ele dizia à mãe:

“Os olhos de Biacão, /senhora Matinião, /de mulher, sim; /de homem, não!”

- Que nada, meu filho. - respondia-lhe a rainha. - Biacão é homem,  e não mulher.

Mas o príncipe insistia sempre com a mesma cantilena:

“Os olhos de Biacão, /senhora Matinião, /de mulher, sim; /de homem, não!”

A rainha, então, propôs ao filho que se ele queria saber mesmo se Biacão era homem ou mulher, que fosse  passear com ele no jardim. E, quando chegasse lá, deitasse numa rede e mandasse Biacão se deitar em outra. Quando batesse o vento, se as folhas caíssem em cima de Biacão, ele era um homem. Mas, se em vez das folhas caíssem flores em cima de Biacão, ele era uma mulher.

Mas o cavalo recomendara muito a Biacão para que ele nunca fosse a pé a lugar algum. E que fosse sempre montado nele. Portanto, quando o príncipe convidou Biacão para ir ao jardim, respondeu-lhe:

- Espere aí, eu vou selar o cavalo.

- Mas o jardim é perto. - observou-lhe o príncipe.

- Mas eu não posso andar a pé. - respondeu-lhe Biacão.

Selou o cavalo, montou e foram-se. Quando chegaram ao jardim, cada um deles deitou-se numa rede. O príncipe dormiu, mas Biacão não. Quando o vento começou a soprar, as flores caíram em cima de Biacão, e as folhas, em cima do príncipe. Aí, então, o cavalo relinchou, e as folhas foram todas para cima de Biacão, e as folhas para cima do príncipe. Biacão fez o príncipe acordar.

Quando o príncipe se viu todo coberto de flores, ficou danado. Ao chegar ao palácio, o príncipe contou tudo à rainha e cantou furioso:

“Os olhos de Biacão, /senhora Matinião, /de mulher, sim; /de homem, não!”

A rainha tudo fez para tirar aquela cisma do filho, mas foi inútil, ele não cedia. Ela, então, disse ao filho que convidasse Biacão para irem tomar banho no rio. Se Biacão aceitasse o convite, era um homem; se não aceitasse, era uma mulher.

O príncipe assim fez. E Biacão aceitou o convite: montou o cavalo e lá se foi para o rio. Quando lá chegaram e começaram a se despir, o cavalo rebentou o cabresto e saiu desembestado pelo campo a fora. Biacâo saiu atrás do cavalo, corre daqui, corre de lá, até que conseguiu agarrá-lo. Mas, voltando com a roupa ensopada de suor, disse ao príncipe que não ia mais tomar banho. O príncipe ficou desapontado. Contou então o fato à rainha, repetindo:

“Os olhos de Biacão, /senhora Matinião, /de mulher, sim; /de homem, não!”

- Meu filho, respondeu-lhe a mãe, você está maluco. Biacão é homem. Mas, enfim, convide-o para jantar. Se ele, quando chegar à mesa, procurar um assento baixo e esperar que a comida esfrie para comer, ele é uma mulher; caso contrário, é um homem.

O príncipe convidou Biacão para jantar, oferecendo-lhe um banco bem baixinho, para que ele sentasse. Mas, prevenido antes pelo cavalo, Biacão pediu um tamborete alto e foi-se servindo da comida ainda fumegante. O príncipe quase morreu de tão contrariado. Não quis comer e foi procurar a rainha com a cantilena de costume. A rainha então disse:

- Vá ao quarto dele, quando ele estiver dormindo, e veja se ele é um homem ou uma mulher.

Avisado pelo cavalo, Biacão não dormiu naquela noite. Quando o príncipe foi-lhe entrando pelo quarto, encontrou-o bem acordadinho, sentado na cama.

Então a rainha criou outro plano. Iria fingir-se doente e pediria a Biacão que matasse uma galinha e fizesse um caldo para ela beber. Se fizesse o caldo bem feito Biacão era uma mulher; senão, era um homem.

Assim foi. A rainha fingiu estar muito doente. O príncipe chamou Biacão e lhe disse muito aflito:

- Chiii! Biacão, minha mãe está muito doente. E me disse que tem certeza de ficar melhor se você fizer um caldo de galinha para ela. E Biacão lhe disse que faria.

O príncipe, então, às escondidas, ordenou aos criados que espiassem como Biacão matava a galinha e preparava o caldo.

Biacão foi para a cozinha e torceu o pescoço da galinha em vez de cortá-lo. Os criados começaram a rir e a lhe dizer:

- Oh! E é assim?

- Eu não sei… - respondeu-lhes Biacão. - Então me ensinem.

Os criados mandaram que ele fizesse sozinho. Então Biacão arrancou as penas maiores da galinha e deixou a penugem. Depois, agarrou a bicha sem lavar, nem abrir, e já a ia pondo dentro da panela para cozinhar. Os criados, morrendo de rir, perguntaram-lhe se ele não ia tirar as tripas.

- É preciso? - perguntou Biacão.

- É claro - responderam-lhe os criados.

Biacão abriu a galinha e arrancou-lhe as tripas aloucadamente, jogando-a, em seguida, para dentro da panela. Os criados lheperguntaram se ele não ia pôr sal.

- Ah é verdade. - disse-lhes Biacão, pegando um punhado de sal e atirando-o dentro da panela.

- Agora falta a cebola. - avisaram a Biacão os criados.

- Por que não me disseram logo? - perguntou-lhes Biacão. - Vão buscar a cebola.

Os criados trouxeram um bocado de cebolas, e Biacão atirou-as dentro da panela inteirinhas, sem lhes tirar a pele, sem lavar, nem nada.

Assim que a galinha começou a ferver, Biacão tirou-a do fogo, bem dura ainda. Colocou-a num prato, encheu uma tigela de porcelana com o caldo, derramou farinha dentro, e levou aquilo à rainha dizendo-lhe:

- Eis o caldo e a galinha. Deve estar tudo muito bom. Fiz com cuidado.

A rainha, só de olhar aquela porcaria, ficou com tanto nojo que gritou:

- Leve isso daqui para fora. Não presta nem pra cachorro.

Biacão saiu do quarto bem satisfeito, tirando lascas de galinha e comendo-as.

O príncipe foi ver a mãe que, depois de lhe contar o que Biacão lhe fizera perguntou-lhe:

- Então, meu filho. Viu como não é uma mulher?

- Qual nada minha mãe. - respondeu-lhe o príncipe. - Os olhos de Biacão, de mulher sim, de homem não.

Aí, a rainha combinou com o príncipe:

- Vamos fazer uma última experiência: quando eu me encontrar num lugar sozinha com ele, começarei a gritar que ele está me agarrando. Se for mulher, confessará logo, pois só assim evitará ir para a forca.

Assim foi. Quando a rainha se encontrou com Biacão num corredor, fez uma gritaria dos diabos, dizendo que ele a havia agarrado. Biacão defendeu-se como pôde, mas não disse que era mulher. Foi preso e condenado à forca. O cavalo, então, lhe disse:

- Não se importe. Tome este breve. Antes que o enforquem, peça que o queimem, e deixe estar.

No dia marcado, armaram uma forca diante do palácio, numa praça muito grande, cheinha de gente. O rei, a rainha, o príncipe. Enfim, toda a corte estava nas janelas do palácio.

Antes de Biacão subir para a forca, o rei perguntou-lhe qual era sua última vontade. Biacão pediu que lhe trouxessem algumas brasas. Quando as trouxeram, e lhes puseram diante dele, Biacão tirou o breve do pescoço e jogou-o em cima das brasas. Quando o breve começou a queimar, soltando muita fumaça, começou a descer do céu da praça aquela nuvem branca, ouvindo-se dentro dela uma zoada que dava medo: sons de música, rolar de carruagens, alarido de gente. O povo ficou muito admirado, sem mais se importar com Biacão. A nuvem foi descendo, cada vez mais aumentando o barulho dentro dela. Quando a nuvem chegou a certa altura, uma voz perguntou bem alto:

- Que é isto?

- É Biacão, respondeu-lhe o rei, que quis forçar a rainha. E, por isso, vai ser enforcado.

- Quê?! – perguntou-lhe outra vez a voz. - Biacão quis forçar a rainha?!

- Quis, explicou o rei, e vai morrer por causa disso.

- Biacão. Biacão. - estrondou a voz terrível. - Tire a roupa e mostre quem é.

Biacão mais que depressa começou a tirar a roupa de homem, aparecendo vestida de princesa, linda que só vendo.

Nesse instante, começou a descer da nuvem uma carruagem muito rica, acompanhada por uma porção de músicos, tocando seus instrumentos, e um magote de cavaleiros, cada um mais bem vestido que o outro. Da carruagem, desceu um príncipe formoso como o sol, que deu a mão à princesa. Depois, os dois subiram à carruagem, que se dirigiu ao palácio com todo aquele acompanhamento.

A moça, logo que viu o príncipe, reconheceu nele aquele que dormia ao seu lado no palácio, no fundo do mar. Quase morreu de contente. O rei também logo reconheceu seu filho, que fora encantado, havia muitos anos.

A rainha madrasta, do príncipe que acabava de se desencantar, e seu filho que tinham levantado aquela falsa acusação a Biacão, atiraram-se pela janela abaixo e morreram espatifados.

O príncipe casou-se com Biacão e viveram felizes por muito e muitos anos, até a morte, sempre em companhia do velho, que se desencantara também. 

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