Até o
século passado, o mito mais importante da Paraíba e do nordeste era Cabra
Cabriola - uma mulher muito gorda, que aparecia em suas ruas, assim de repente.
Era como se vivesse por todos os cantos. Era só querer e surgia onde bem
pensasse. Era, por isso, uma ameaça constante. Toda gente corria longas
distâncias, para se verem livre da indesejável influência da Cabriola.
Sua
figura era uma negra africana, quase centenária, usando invariavelmente uma
toalha enrolada na cabeça, à moda baiana. Sempre vestida de branco. Os braços
nus realçavam bem o contraste das cores. Tinha um andar desigual, gingador,
bamboleado. Cara fechada, de quem se achava com raiva incontida. Mas não era
por isso que os meninos da época lhe tinham medo. Ninguém sabia onde ela
morava. Nunca ninguém descobrira tal segredo. E ninguém a vira também jamais
comendo qualquer coisa. Não bebia água. Andava por toda a cidade e não era capa
de servir-se de alimento algum. Nem pedia e, se alguém lhe oferecia
espontaneamente, recusava. A roupa muito branca, sempre limpa. Usava sandálias
enfeitadas e costumava também ostentar joias falsas, o ouro realçando o negror
do seu colo e dos seus braços roliços.
Não havia ninguém que não conhecesse a Cabra Cabriola. Homens e mulheres
espiavam-na de frente e até ensaiavam um cumprimento, que não era
correspondido. Enquanto os meninos ficavam a olhar de soslaio, pela frincha das
portas entreabertas. E, ainda assim, bem agarrados às saias maternas.
Pelo
fim do século, seus passeios escasseavam. Já era raro quando aparecia em seu
andar remexido. E, como todos sabiam, ela só aparecia pelo meio-dia, com o sol
tinindo de quente.
Quando
tocavam os sinos de São Francisco e São Bento, podiam alongar os olhos pela Rua
Direita, que a Cabriola lá deveria ir atravessando, num trecho qualquer. Essa
pontualidade dava que pensar aos grandes. Por que sempre à mesma hora?
Havia
quem lhe tivesse ouvido a voz, que era afinada, mas antipática.
À
meia-noite, Cabriola fazia outro passeio pela cidade. Mas, então, a coisa
mudava de aspecto. Ou ia à “matança”, buscar um pouco de carne verde, para se
abastecer durante a semana, ou ia ao mercado de Tambiá, para encher o seu saco
com o que fosse necessário: farinha e feijão, açúcar e café, sobretudo café,
pois diziam que ela era louca por café. Ou ia à bica. E, de lá, trazia o pote
cheio de água. Também costumava visitar casas de comércio atacadista, para se
munir de panos e roupa.
No dia
seguinte, quando os comerciantes abriam suas casas, se encontrava tudo
remexido. Já sabiam: quem lá estivera fora a Cabra Cabriola. A polícia nada
podia fazer, à falta de provas. Nem sequer a incomodava. Na verdade, jamais a
incomodava. O comendador Santos Coelho dizia que não valia a pena perder tempo
em trazer a Cabriola à chefiatura de polícia, porque se tratava de um ente que
tinha parte com o demônio. Não lhe interessava prendê-la. E, ademais, as faltas
que cometia eram, na verdade, insignificantes.
O mais
interessante, porém, é que a cidade costumava ouvir, pela madrugada, nas noites
de luar, um canto belíssimo, como o que dizem que as sereias cantam. De onde
partiria aquela voz tão melodiosa? Alguma enamorada lírica? Nada disso. Era só
perguntar: todos sabiam que se tratava de Cabriola que, nas noites de luar,
remoçava, tornando-se um encanto desejado por todos os rapazes das serenatas,
aqueles que bebiam vinho, chupavam caju e tomavam banho nas águas do Jaguaribe.
Os que estavam deitados em suas camas, dentro de casa, se torciam de prazer, só
em ouvir a doçura daquela voz que, de tão sedutora, nem parecia deste mundo.
Até os que viviam indiferentes, livres já dos problemas sexuais, sentiam-se
reviver, ao som daquela voz maravilhosa.
Também a história dessa Cabra Cabriola não se distinguiu por outros motivos. O nome da africana despertava qualquer coisa de demoníaco: saltos e vivacidade de caprino. Só o nome? Eis o que nunca ninguém pôde averiguar.