O primeiro nome de Cantagalo era Manuel. Vivia no amplo adro do Convento de São Francisco e era um mulato envelhecido pelas doenças. Tomava seu groguezinho diário, o que lhe fazia aumentar a doidice antiga, tornando-o mais inquieto e serelepe. No resto, era calmo. Não insultava ninguém, não mexia com pessoa alguma. Costumava dormir dentro do nicho de azulejo, onde está a imagem de Jesus, arrastando-se para chegar ao fim do Calvário. Quando ficava meio embriagado, gostava de mudar de leito. Andava muito de um lado para outro, por entre os nichos, e o sol não existia para Cantagalo, mesmo quando lhe batia de chapa.
A insensibilidade desse homem era verdadeira, sempre igual, não sofrendo jamais a menor modificação. Impassível, atravessaria o resto da vida assim. Nada o faria capaz de uma reação enérgica. Os moleques corriam atrás dele, atirando-lhe pedras. Às vezes, uma dessas pedras o feria, mas Cantagalo não protestava nem reagia. Sofria calado. Quando a perseguição era demais, então ele usava as pernas para fugir, correndo à toa, como um demônio.
Corria de um nicho para outro com velocidade de seta disparada pelo arco. Todos viam como o pobre ainda tinha seguros restos de mocidade, pois nunca se cansava nessas correrias, tão constantes quanto divertidas para a molecada.
E juntava gente para ver as correrias infindáveis. Ouviam-se aplausos quando Cantagalo se esquivava de uma pedrada, que quase ia lhe pegando as canelas. As risadas ecoavam no pátio da igreja, quebrando o seu silêncio frio, povoado de almas do outro mundo. Logo que serenava a brincadeira de mau gosto dos moleques, o perseguido passava longo tempo descansando, deitado. E só se levantava por precisões de maior interesse.
Comia os restos das casas da Rua Direita, que as criadas lhe davam generosamente, todos os santos dias. Havia até quem afirmasse que ele era um tanto inclinado para as mulheres - e por essa razão, nada lhe faltava ao estômago ávido, bem como para outras necessidades, quando se apresentava mais bem arranjado, já que sempre andava mais ou menos bem vestido.
O que ele fazia questão fechada era de não se calçar. Os pés viviam sempre em contato com o solo - uns pés tão grandes mesmo, que chamavam a atenção de toda gente. E cheios de bichos. A diversão preferida de Cantagalo era tirar esses “bichos de pé” à moda dos cães: com os dentes.
À tarde, ele aparecia no começo da Rua Direita e punha-se a espiar para coisa alguma, numa atitude de leseira. Seus olhos não tinham a menor expressão. Permanecia calado, não fazia mal a ninguém, nada pedia. Se não lhe dessem roupa comida e água, também não tomaria a menor iniciativa. Era preciso que o chamassem e, quando o faziam, ele se chegava humilde e silencioso como uma botija. E, então, as criadas começavam a botar os dentes de fora sentimentais. Na conversa, que nem era correspondida, somente elas tinham saliência. Depois, saíam dizendo que nunca viram sujeito mais sem-vergonha. Tudo isso acontecia somente durante o dia.
Os meninos sabiam dessas coisas e olhavam Cantagalo meio desconfiados, pelo fato de ele se transformar em fantasma, quando a noite chegava com seus ventos e os seus silêncios, que não acabavam mais.
Assim que tocavam as Ave-Marias, lá vinha ele chamado para beber água nas casas da vizinhança. Bebia muita água, demasiada mesmo. Davam-lha em canecos de folha de flandres. E, quando as criadas lhe perguntavam por que ele tomava tamanho porre de água, ele lhes respondia sempre a mesma coisa: “para não ter sede mais tarde”.
Estranha essa miserável e abandonada personagem de lenda. Durante o dia, não dispensava cachaça. Mas, à noite, só bebia água. Não havia jeito de fazê-lo tomar, nem mesmo um pouquinho de vinho do Porto. Tudo isso era sabido.
O legítimo Cantagalo, porém, começava a existir somente nas horas noturnas, numa cidade dominada por bandidos soltos e desenfreados, ou por bruxarias e sortilégios. Subitamente, ele tomava grandes proporções. Não eram somente as crianças que se apavoravam, ao ouvir o seu cântico tristonho a cortar os minutos longos da madrugada. As criadas também se encolhiam de medo e fugiam dos lugares úmidos: encostavam-se umas às outras, porque o calor da parede parece dar coragem para melhor se espancarem as feias visões noturnas. O frio é danado para gerar o contrário. Lugares de baixa temperatura costumam ser olhados de longe. Queria lá saber daquilo? Todos iam direto para onde houvesse calor barulho e movimento.
O cântico do fantasma, porém, punha arrepios na espinha. Enchia o espaço na sua tonalidade ritmada. Dolente, expressava qualquer coisa de saudade, de mistura com melancolia e dor. Cantagalo não imitava aquilo que o seu nome diz. Fazia variações notáveis. Com as mãos, improvisava um aparelho musical. Unindo-as, em concha fechada diante da boca, com o sopro ia tirando notas de inacreditável vigor e que, além disso, eram sonoras e harmoniosas.
Dizia-se que aquilo pretendia afugentar os diabos que se amontoavam à sua volta. E, lá uma vez ou outra, ouvia-se o galo cantar. Na verdade, tal galo nunca existia. Era apenas uma imitação maravilhosamente exata que Cantagalo fazia.
No alto da torre da igreja de São Francisco, ainda se vê o galo de ferro que, em outros tempos, gozava do direito imperial de três litros de milho por dia, como ração. Não se sabe o motivo daquele símbolo, que ficava em frente do outro: o leão de São Bento, que também recebia a sua ração diária, de carne verde, e tinha as honras de alferes do exército nacional.
Ora, metera-se na cabeça de Cantagalo que ele estava “escarnado”, no alto da torre de são Francisco, E, assim sendo, tinha que representar o seu legítimo papel de intérprete. E daí, os estridentes cantos de galo que, com todo o requinte, ele desferia pela noite a dentro.
Os meninos ouviam tais manifestações, pois estavam certos de que o homem, então, virava alma do outro mundo. E andava ali por perto, dentro do quarto, atrás das portas, por baixo das camas. E as criadas, com o dedo nos lábios, impondo silêncio. Dificilmente se conseguia conciliar o sono.
À medida que o terror crescia nos peitos, chegava-se a ouvir passos de Cantagalo no corredor das casas, puxando cadeira para se sentar, tomando água, abrindo o armário para tirar doce de goiaba, ou geleia de araçá. Ouvia-se nitidamente tudo quanto fazia. E o resultado era o maior pavor deste mundo.
Se outros mitos não existissem na Paraíba, bastaria esse para trazer os meninos bem comportados e obedientes, com os ouvidos cheios de voz musicalizada na beleza nova, perturbando a sua doce tranquilidade. Voz que procedia do pátio, ali perto, e do qual era proprietário o doido, que bebia muita água, que apanhava dos moleques, que se botava inteiro para as amas jovens e bonitas, que era o galo de ferro de São Francisco, que era o dono de vários nichos de azulejo e que, à noite, trepava no cruzeiro de pedra, para cantar. Voz que também vinha do subterrâneo, que todos diziam existir entre São Francisco e a Fortaleza de Cabedelo. Isso porque essa voz ora ficava longínqua, ora muito próxima na esquina da Rua Direita. Voz melodiosa, que encantava os corações dos grandes, porém alarmava estranhamente o pequeno mundo em que vivem as crianças.