Houve, noutro tempo, um rei malvado, que tinha o hábito de jogar. E todos aqueles que com quem ele jogava perdiam. Uma vez, esse rei malvado convidou um outro rei, que era amigo dele, para jogarem. E, no dia marcado, o rei amigo se apresentou. E, como sempre acontecia, ele perdeu todas as mãos do jogo. Até que se desenganou e despediu-se, para ir embora. Mas o rei malvado, que desejava matar o rei amigo, marcou-lhe um outro dia, para ele voltar ao palácio, o que era costume do rei malvado fazer com todos com quem ele jogava.
O rei amigo foi avisado do perigo que ele estava envolvido. Então, ele se dirigiu-se a um frade, para lhe aconselhar o que haveria de fazer, para evitar a sua morte. O frade, não sabendo o conselho que haveria de lhe dar, mandou-o que fosse ter com outro frade, que ainda o enviou para um terceiro frade. Assim, o último frade aconselhou ao rei que ele se pusesse debaixo de uma árvore, e lhe indicou qual era ela. E lhe disse ainda que ele tivesse muito cuidado num pássaro que iria se sentar na árvore. Esse tal pássaro, segundo o frade, trazia no bico um escrito e que o iria largar no chão. Quando o rei apanhasse o escrito, ele seguisse o que o tal escrito estava lhe ensinando.
Assim, o rei fez. Encaminhou-se até a árvore indicada, sentou-se debaixo dela. Daí a uma hora, vieram chegando os pássaros, até que também chegou um que tinha o peito amarelo e que trazia o escrito. E o largou.
O rei apanhou o papel. E, com calma, leu as seguintes palavras: “O rei, com quem vós jogastes, tem três filhas encantadas. Elas três irão se lavar no rio, virando-se em três patas. Põe-te escondido na beira do rio, até que elas cheguem. Depois que elas tirarem a roupa para se banharem, vós deveis apanhar a roupa da última que se despir, e procurais esconder a roupa dela. Depois do banho, as princesas correrem para pegar as suas roupa, e a mais moça não encontrando a dela, ela irá ficar muito aflita e vai prometer livrar de todo mal aquele que lhe restituísse a roupa”.
O rei assim fez, como o frade o recomendou. Seguindo para a beira do rio, escondeu-se. Então, chegaram as três princesas irmãs. Tiraram todas as três as suas roupas e se viraram em três patas. E se atiraram ao rio. Depois que se fartaram de se banhar, saíram da água para se vestirem e retornarem ao palácio. As duas se vestiram, porém a mais moça ficou desesperada, porque não conseguia ir com as suas irmãs. Chegou até a desconfiar das duas irmãs, achando que elas lhe tivessem escondido a roupa. E gritou bem alto, implorando a quem lhe roubara a roupa, entregasse-lhe de volta. Mas o rei se fez de surdo, não aparecendo. E a princesa, mais uma vez, implorou a mesma coisa. Mas nada. Só após a terceira vez, quando prometeu a quem lhe entregasse a roupa o livraria do mal que tivesse de lhe acontecer, o rei saiu do esconderijo, onde estava, e dirigiu-se para a princesa dizendo-lhe:
- Aqui está a tua roupa, que eu tinha escondido, a fim de me livrar da morte que vosso pai me quer dar.
A moça lhe respondeu:
- Eu tenho por costume cumprir o que prometo. E disso não me afasto. Meu nome é Cova da Linda Flor. E eu sei que hoje é o dia que vós tendes de ir à casa do rei, meu pai. Pois eu vos aviso: chegando lá, vós bateis à porta. Ela vos será aberta. Vós subireis, até chegardes à porta da sala. Lá, vós achareis também fechada. Vós bateis por dentro. A porta vos abrirá. Quando ela se abrir, vós vos encostais na parede, para vos esconder. Não vos assusteis com um foguetão que há de sair da sala, que é para dar fim à vossa vida. Passando o foguetão, vós entrais na sala e vós vos encontrareis com o rei meu pai.
Assim o rei fez. Quando ele se apresentou diante do rei malvado, ele ficou bastante nervoso e irritado, por ver o primeiro que tinha escapado da sua mortal trama. Então, ordenou ao rei salvo que ele fizesse amanhecer o seu palácio no meio do mar, sob pena de perder a vida.
O rei jurado de morte se recolheu a seu aposento, no palácio, muito triste e pensativo, temendo perder a vida no dia seguinte. E a princesa se dirigiu para onde ele estava e lhe perguntou a causa de sua tristeza. E ele lhe respondeu que iria perder a vida, no dia seguinte, se não fizesse aparecer o palácio no meio do mar, conforme seu pai lhe tinha ordenado. Então, a princesa lhe prometeu que ele ainda não morreria. E que dormisse descansado porque, quando amanhecesse, estaria o palácio no meio do mar. E o que aconteceu chamou a atenção de todos.
Como o pai da Cova da Linda Flor não conseguiu matar o rei, ordenou-lhe que ele desse de conta dum anel que sua mulher tinha perdido no mar, sob pena de perder a vida no dia seguinte. Mais uma vez, o rei se retirou a seu aposento, triste e pensativo. E a princesa, para o aposento do rei se dirigiu, e perguntou-lhe o motivo de tanta tristeza.
- Tenho de morrer amanhã, disse-lhe o rei, se não der conta de um anel que a rainha vossa mãe perdeu no mar.
A moça lhe prometeu que ele estivesse descansado. E que ele iria achar o anel. Deu-lhe, ainda, uma varinha, indicando-lhe uma laje que havia no mar. E que, quando amanhecesse, ele se dirigisse à tal laje, e batesse com a varinha, e iria sair os peixes que estavam no fundo da laje. E, quando um peixe de papo amarelo aparecesse, ele o agarrasse e o abrisse, que dentro ele encontraria o anel.
Assim foi. Tudo se passou como a princesa lhe ensinara. Encontrado o anel, o rei foi levá-lo ao rei malvado, que logo o reconheceu e, ainda, percebeu que eram artes da sua filha Cova da Linda Flor. Então, o rei malvado resolveu acabar também com a filha. Mas a moça, adivinhando a trama do pai, foi ter ao aposento do rei perseguido e lhe disse que ele fosse à estrebaria de seu pai. Lá, ele encontraria três cavalos: um muito gordo e grande, que andava como a água; outro, que andava como o vento; e outro, que andava como o pensamento. O rei deveria pegar o último e que lhe viesse ao encontro, para que eles pudessem fugir. No mesmo instante, o rei perseguido foi à estrebaria. Mas não encontrou o cavalo que a princesa lhe dissera. E pegou o cavalo do meio, que andava como o vento. Isso desagradou bastante a princesa. Mas, como já fosse perto do dia, montaram-se ambos no cavalo e fugiram.
Amanhecendo, o rei malvado achou falta de sua filha. E, ao ir ao quarto do outro rei, também não o encontrou. Dirigiu-se, então, à estrebaria, não encontrando o cavalo que andava como o vento. Imediatamente, mandou aparelhar o cavalo que andava como o pensamento e seguiu atrás dos fugitivos. E, quando estava para alcançar os dois, a princesa fez virar o cavalo em que fugia num estaleiro; a sela, num toro de pau; o freio, numa serra; o rei ficou em cima do estaleiro; e ela embaixo, com a serra na mão a serrar.
Chegando o rei malvado, perguntou se tinham visto passar um homem com uma moça na garupa. A resposta que teve foi: “Serra, serra, serrador. Eu também sei serrar”. Cansado de perguntar, e sem ter uma resposta, o rei malvado voltou desapontado. Chegando, contou à rainha o que tinha encontrado, ao que ela lhe disse:
- Tu és muito inocente. O estaleiro é o cavalo; o toro, a sela; o freio, a serra; e os dois eram o rei e a nossa filha.
O rei malvado voltou para ver se os pegava no caminho. Mas já não encontrou mais os serradores. Seguiu e, quando já estava a pegar os fugitivos, eles se viraram numa capela. Dentro dela, havia um altar; no altar, uma imagem; ao pé do altar, um frade, rezando seu rosário. Perguntando-lhe se tinha visto passar um homem com uma moça na garupa, a resposta do frade foi: “Pai nosso; Ave, Maria”. Cansado, foi-se embora.
Chegando à casa, contou a rainha, que lhe respondeu:
- Tu és um tolo. A capela era o cavalo; o altar, a sela; a imagem, a princesa; o frade, o rei. Pois que voltes o quanto antes.
O rei malvado partiu. E, pelo caminho, não encontrou mais capela nem frade. Depois de muito andar, o rei malvado encontrou, num cercado, uma roseira com uma rosa, e uma mamangaba beijando a rosa. Perguntou à mamangaba se tinha visto passar por ali um homem a cavalo, com uma moça na garupa. A mamangaba só voava em torno da rosa. Na terceira pergunta, ela voou em cima do rei malvado e lhe deu uma ferroada. O rei malvado voltou desapontado, contou à rainha o que se tinha passado, e ela lhe respondeu:
- Tu és ainda muito tolo. A roseira era a sela; a rosa, nossa filha; o cercado, o cavalo; a mamangaba, o rei. Portanto, volta o quanto antes.
O rei malvado não quis voltar, e a rainha, bem zangada, pediu a Deus que o rei fugitivo fosse ingrato com a sua filha e a desprezasse. E, assim, aconteceu. Depois que estiveram residindo numa cidade por algum tempo, os dois se separaram, e o rei se esqueceu de todo de Cova da Linda Flor.
Então, o rei contratou casamento com outra princesa. E, quinze dias antes do casamento, mandou fazer anúncios, para se apresentarem as pessoas que melhores doces soubessem fazer. E, entre as que se apresentaram, apareceu uma moça, que se encarregou de fazer um casal de pombos que falassem. E pediu ao rei, que iria se casar, uma só condição: ele deveria pôr, em cima de uma mesa, diante de todo o povo, na véspera do casamento, o casal de pombos. O rei, então, concordou. E, no dia marcado, o rei mandou chamar todo o povo da cidade, para presenciarem aquela brincadeira da doceira.
Estando todos presentes, disse a pomba para o pombo:
- Pombo, tu não te lembras quando o rei, meu pai, te convidou para jogar com ele? Pombo, tu não te lembras quando fui me banhar no rio e eu te prometi livrar de todo o perigo se tu me desses a minha roupa? Pombo, tu não te lembras quando meu pai te chamou ao seu palácio, para te tirar a vida, e tu te salvaste por meus conselhos? Pombo, tu não te lembras quando meu pai te ordenou que tu fizesse amanhecer seu palácio no meio do mar, sob pena de tu perderes a vida, o que tudo conseguiste por meus conselhos? Pombo, tu não te lembras quando fugimos para escaparmos da morte, no cavalo que corria tanto como o vento, e sendo perseguidos por meu pai nos salvamos, por meus encantos? Pombo, tu não te lembras que aconteceu por três vezes e que, na última, nos viramos numa roseira, com uma rosa e uma mamangaba, e que tudo fiz para te salvar? E, agora, tu vais te casar com outra?
O pombo ia levantando a cabeça à proporção que o rei se ia lembrando das coisas que se tinham passado com ele. E o rei desfez o trato do casamento. E recebeu, por mulher, aquela que o tinha livrado da morte.