Existiu, noutros tempos, um rei como há muitos. Ele tinha três filhas belas e moças. Era difícil encontrar criaturas mais belas. No entanto, havia grande diferença entre as três. As duas maiores eram soberbas. Já a mais nova era bondosa, amável e estimada por todos. Era bela como o dia e delicada como a neve. Ela sobrepujava, em muito, a formosura das duas irmãs maiores.
Um dia, achavam-se as três sentadas no seu aposento, falando dos respectivos futuros maridos. A certa altura, disse a mais velha:
- Se um dia eu me casar, será com um homem de cabelos dourados e de barba dourada.
Disse a segunda:
- Já o meu deverá ter barba e cabelos prateados.
A mais nova manteve-se calada. As outras duas, curiosas, perguntaram-lhe se a mais nova não desejava um marido.
- Não, respondeu ela. - Mas, se o destino me der um homem, saberei aceitá-lo, nem que se trate de um simples cão manco.
Riram-se as duas mais velhas, zombando dela. E afirmaram-lhe que viria o dia em que ela que pensaria de outro modo.
Há muita gente que diz a verdade sem o saber. Foi o que sucedeu com as princesas. Pouco antes de terminar um ano, com efeito cada uma tinha o pretendente desejado. O da princesa maior era um homem de barba e de cabelos dourados. E recebeu imediatamente o sim. O da segunda era um homem de barba e de cabelos prateados. Quanto à princesa mais moça, não arranjara nenhum. Só dispunha de um cão manco. Lembrando-se da conversação sustentada com as irmãs, pensou: “Deus me ajude no meu casamento”.
Não querendo quebrar a palavra empenhada, deu ao cão que a pretendia por mulher uma resposta afirmativa. A celebração durou vários dias e com grande pompa. Mas, enquanto os convidados dançavam e se divertiam a valer, a princesa mais moça, sentada a um canto, sozinha, chorava. Era um espetáculo de cortar o coração.
Terminadas as festas, os recém-casados deveriam se mudar para os seus respectivos castelos. As duas princesas maiores partiram, em magníficas carruagens, com grande séquito. A mais moça, pobrezinha, teve de caminhar, porque o marido, um simples cão, não dispunha de cavalos nem de cocheiro. E, depois de muito andarem, os dois chegaram a uma grande floresta, aparentemente sem fim. O cão prosseguia manquitolando. A princesa, sempre chorando, acompanhava-o. Mas, de repente, ela se deparou com um esplêndido castelo, rodeado de verdes e de formosos prados. Era uma maravilha. Parando, a mais nova perguntou ao cão de quem era aquilo tudo.
- Ora, respondeu-lhe o cão manco, esse castelo é nosso. Aqui é que iremos morar e aqui você ficará à vontade.
A princesa, com os olhos ainda marejados de lágrimas, sorriu tanto, não se cansando de admirar o que estava vendo.
- Só lhe peço uma coisa, continuou o cão, e espero que não me recuse.
- De que se trata? - indagou-lhe a princesa curiosa.
- Que nunca me fite, quando eu estiver dormindo. Quanto ao resto, poderá fazer o que mais lhe agradar.
A princesa prometeu que lhe obedeceria de muita boa vontade. E os dois rumaram para a morada. Lá na morada, se por fora era uma verdadeira beleza, por dentro, então, nem falar. Havia prata e ouro por tudo quanto era canto. Tudo brilhava. Tudo o que se quisesse estava lá dentro. A princesa corria o dia inteiro, de um aposento a outro, não se cansando de examiná-los, pois um sobrepujava o outro em esplendor. Chegada à noite, foram ambos deitar-se. O cão estirou-se no leito. E a princesa notou que ele deixara de ser cão para transformar-se num jovem. Nada proferiu, contudo, lembrando-se da promessa feita.
Passou-se algum tempo. A princesa recebia tudo o que desejava. Aliás, era ela só desejar e lá apareciam as coisas. Mas o cão afastava-se todos os dias e só voltava depois de posto o sol. Aí, era sempre amável, a tal ponto que seria uma maravilha se os demais homens possuíssem a metade apenas de sua extrema gentileza. A princesa começou a amá-lo, esquecida de que, afinal, não passava de um simples cão manco, porque, bem afirma o provérbio, que o amor é cego. Apesar de tudo, foi-se aborrecendo e pensava frequentemente em visitar as duas irmãs e trocar impressões com elas.
Certa vez, falou a respeito da projetada visita com o marido, pedindo-lhe licença para a viagem. Mal o cão a ouviu, concordou com ela e acompanhou-a pessoalmente, durante bom trecho de caminho, até que estivessem fora da floresta.
Quando as três irmãs se viram reunidas, reinou naturalmente grande alegria. E houve um mar de perguntas. De repente, disse a maior delas:
- Eu fui uma boba, quando desejei um marido de barba e de cabelos de ouro. É pior que o pior dos anões. Desde o casamento, não tive um dia feliz.
A segunda interrompeu-a:
- Eu também não passo melhor com o meu marido de barba e de cabelos prateados. O homem é realmente mau e não proporciona uma hora sequer de felicidade.
Ambas perguntaram, então, à mais moça como ela ia passando.
- Bem, respondeu ela, não tenho o direito de me queixar. Realmente, apesar de ter-me casado com um cão manco, é a bondade de pessoa. Não pode haver marido melhor.
As outras duas, assombradas, fizeram chover pergunta após pergunta. E a mais moça contou-lhes tudo fielmente. Quando as duas souberam como a irmã mais nova vivia bem no grande e luxuoso castelo, sentiram-se roídas de inveja.
E indagaram-lhe se ela não tinha uma queixa, uma queixazinha que fosse.
- Não, respondeu a princesa. - Eu só posso elogiar meu marido. Ele é muito bom, gentil. Agora, só me falta uma coisa, para que eu seja inteiramente feliz.
- Qual é, hein? Qual é? - indagaram as duas irmãs, ao mesmo tempo.
- Todas as noites, quando ele regressa, muda-se em homem. E eu sinto que não me é dado vê-lo como ele é realmente.
As duas concordaram, afirmando que o cão manco escondia alguma coisa à mulher. E a princesa acabou por ter a curiosidade despertada, esquecendo-se da proibição, imposta pelo marido. Perguntou, então, às irmãs o que ela deveria fazer, para vê-lo, sem que ele nada percebesse.
- Ah, respondeu a maior, nada mais fácil. Olhe, esta aqui é uma lampadazinha.
Esconda-a bem. Quando seu marido estiver dormindo profundamente, acenda-a e poderá vê-lo à vontade, tal qual é.
O conselho pareceu muito bom à ingênua princesa que, pegando a lâmpada, escondeu-a no seio.
Pouco depois, despediu-se e voltou para o seu castelo. O dia passou-se como todos os outros. Finalmente, já noite, o cão manco se deitou. A princesa, ardendo de impaciência, mal conseguiu esperar, até que ele adormecesse. Levantando-se, então, com enorme cuidado, acendeu a lampadazinha e aproximou-a do rosto do marido. Quem pode descrever o seu espanto, quando se lhe deparou com o mais belo jovem e inimaginável. Não conseguia deixar de contemplá-lo. Passou a noite inteira assim. E, quanto mais o fitava, tanto mais belo lhe parecia. Esqueceu-se de tudo. De repente, nasceu o dia. Quando a primeira estrela desapareceu, o jovem, inquieto, despertou. A princesa, assustada, apagou a lâmpada e deitou-se. O jovem, pensando que ela estivesse adormecida, não quis despertá-la. Levantou-se silenciosamente, revestiu-se de forma de cão e partiu, não tornando a aparecer pelo resto do dia.
Com a vinda da noite, tudo se repetiu, como na véspera. O cão voltou da floresta, cansadíssimo. Mal ele adormeceu, a princesa, levantando-se, acendeu a lâmpada e, aproximando-se cuidadosamente, fitou-o. Pareceu-lhe que o marido era ainda mais belo que na noite anterior. Quanto mais o contemplava tanto mais belo o via, de modo que começou a chorar e a rir ao mesmo tempo, doída de amor. Não podia afastar do jovem, esquecida de tudo.
Finalmente, veio a manhã e, quando o primeiro raio de sol brilhou, o jovem mexeu-se e acordou. Mais uma vez assustou-se a princesa e, apagando imediatamente a lâmpada, deitou-se. O marido, certo de que ela dormia a sono solto, não quis acordá-la. E, silenciosamente, transformou-se em cão e fugiu, não reaparecendo durante o resto do dia, como sempre.
Durante a noite regressou da floresta. Também, dessa feita, não logrou a pobre princesa dominar a curiosidade. Mal o marido fechou os olhos, ela levantou-se, acendeu a lampadazinha e, aproximando-se, contemplou-o. Pareceu-lhe mais belo do que nunca. O seu coração se inflamou. E ela se esqueceu do mundo. Não conseguia afastar os olhos. E, assim, transcorreu a noite, inclinada sobre o travesseiro do marido. Quando chegou a manhã, e o sol despontou, o jovem mexeu-se e acordou. A princesa, assustada, pois não percebera que o tempo passara, apagou depressa a lâmpada. Mas a mão lhe tremeu e uma gota de azeite quente caiu sobre o marido. Ele, percebendo o que a mulher fizera, levantou-se inquieto, transformou-se imediatamente em cão manco e fugiu para a floresta. A princesa sentiu tanto que quase enlouqueceu. E correu atrás dele, torcendo as mãos e pedindo, debulhada em lágrimas, que ele voltasse. Mas ele não mais voltou.
A princesa atravessou montanhas e vales. E seguiu caminhos desconhecidos, sempre em busca do formoso marido. Chorava tanto que até as pedras seriam capazes de comover-se. Mas o cão fugira, estava desaparecido, e ela não conseguia encontrar-lhe o paradeiro, muito embora o procurasse, obstinadamente, por toda a parte. Reconhecendo que assim não lograria revê-lo, quis voltar para o lindo castelo. Sucedeu-lhe então o mesmo: o castelo tornara-se invisível, e ela, para onde quer que volvesse os olhos, só via a densa e sombria floresta. Todos a haviam abandonado. Sentando-se numa pedra, ela chorou amargamente, pensando que seria preferível morrer a viver sem o adorado marido. Então, de baixo da pedra, um sapinho lhe perguntou:
- Formosa donzela, por que será que está sentada aqui chorando tão tristemente?
- Como não hei de chorar? Nunca mais poderei ficar alegre. Em primeiro lugar, perdi o meu bem amado. Em segundo, não posso encontrar o caminho de volta ao castelo. Terei de morrer de fome, e as feras me devorarão até os ossos.
- Ora, retrucou o sapo. - Se é só isso, posso ajudá-la. Se me fizer o seu melhor amigo, eu lhe mostrarei o caminho.
A princesa recusou-se, respondendo-lhe:
- Olhe, peça-me o que desejar, mas não isso. Se amei alguém, foi o meu cão manco. E não quero amar mais ninguém, enquanto viver.
Disse isso e se levantou. E, sempre a chorar amargamente, continuou a caminhar. O sapo seguiu-a afetuosamente com os olho E, rindo, arrastou-se de novo para baixo da pedra.
A infeliz princesa caminhou, caminhou, vendo apenas a floresta. E cansou-se. Sentou-se, então, numa pedra, apoiou o queixo na mão e desejou a morte, já que não conseguia viver sem o marido. De repente, do meio da moita, ouviu um ruído. E viu, vindo para ela, um grande lobo cinzento. Muito assustada, pois supunha que ele pretendia devorá-la, redobrou o choro. Mas o animal, parando, abanou a cauda e perguntou-lhe:
- Orgulhosa criatura, por que está sentada aqui chorando tão amargamente?
Respondeu-lhe a princesa:
- Tenho motivos para chorar e nunca mais ser alegre. Em primeiro lugar, perdi meu amado. E, agora, não consigo encontrar o caminho de volta para o meu castelo. Morrerei de fome, ou serei devorada pelas feras...
- Ora, ora, respondeu o lobo, se é só isso poderei ajudá-la. Aceite-me como seu melhor amigo e eu lhe mostrarei o caminho.
A princesa recusou-se:
- Se amei alguém na vida, foi o meu cão manco. E nunca mais hei de amar alguém.
Com tais palavras, levantou-se e continuou a caminhar. O lobo segui-a com os olhos, radiante, sorriu e desapareceu.
A princesa, após andar por muito tempo, sentiu-se de novo sem forças. Não aguentava mais. Sentou-se numa pedra e desejou a morte, pois não poderia viver sem o amado marido. De repente, fê-la estremecer poderoso rugido de leão, que rumou ao seu encontro. A jovem, terrivelmente assustada, pensou que ele pretendesse devorá-la. Mas a fera estava presa por fortíssimas correntes. Aproximando-se da jovem, sacudiu alegremente a cauda e perguntou-lhe:
- Formosa donzela, por que está sentada aqui, chorando tão tristemente?
- Tenho motivos para chorar. E nunca mais serei alegre. Em primeiro lugar, perdi meu bem amado. E, agora, não consigo encontrar o caminho de volta para o meu castelo. Morrerei de fome, ou serei devorada pelas feras...
- Ora, ora, retrucou-lhe o leão. - Se é só isso, poderei ajudá-la. Livre-me das correntes, permita-me ser o seu melhor amigo e, em troca, eu lhe mostrarei o caminho certo.
A princesa, tamanho o medo que a dominava, não logrou responder-lhe. E, menos ainda, ousou aproximar-se da fera. De súbito, uma vozinha brilhante, vindo da floresta, a vozinha de um rouxinol empoleirado no galho de uma árvore, cantou:
- Ah, linda donzela, donzela formosa, obedeça ao leão, e lhe tire as correntes.
A princesa, com pena do leão, criou ânimo, livrou-o das correntes e disse-lhe:
- Livro-o das correntes, mas não posso me tornar sua amiga. Eu só amo o meu cão manco, e a mais ninguém.
Verificou-se, então, verdadeiro milagre. Quando as correntes caíram ao chão, transformou-se a fera num belo e jovem príncipe. A princesa, fitando-o, reconheceu nele o bem amado. Ajoelhando-se, abraçou-lhe as pernas e lhe pediu que não mais a abandonasse. O príncipe, erguendo-a com paixão, devolveu-lhe o abraço e tranquilizou-a:
- Nunca mais nos separaremos, minha querida. Tenho provas, mais do que certas, da sua enorme lealdade.
Não se pode descrever a cena. O príncipe pegou a jovem esposa pela mão e levou-a para o castelo. Lá, tornou-se rei, e ela rainha.