Uma vez, havia um homem casado que tinha um bocado de filhos. E, ainda, a mulher paria mais. Foi aí que o homem, para sustentar a tão grande família, se tornou um pescador.
Ele morava perto de um rio. Pescava ali. E, dessa forma, ia sustentando a filharada. Mas, uma vez, estando a sua mulher grávida, e ela já estava no nono mês, o pescador, então, foi ao rio pescar. E meteu a tarrafa. E nada. Meteu a tarrafa para outro lado. E nada. Nem ao menos aparecia uma piabinha. Quando o pescador já ia saindo muito triste, ouviu uma voz, que dizia do fundo da água:
- Se você me der o que de novo encontrar em casa, eu lhe darei muito peixe.
O homem pensou lá consigo: o que pode haver de novo é um cachorrinho, porque eu tenho lá em casa uma cadela para parir. E o bom é que ele nem se lembrou da sua mulher grávida. Então, o pescador disse que sim, que aceitava o negócio. E a voz mandou que ele pescasse num local diferente de onde ele estava. Aí, o pescador meteu a tarrafa no tal lugar e chegou a pescar muitos e muitos peixes.
Chegando a sua casa, um dos filhos lhe foi logo anunciando:
- Papai, papai, mamãe acabou de parir.
Apressado e, ao mesmo tempo, agoniado, o homem entrou no quarto e viu o seu filhinho que acabara de nascer. Era um menino. E contou logo para a sua mulher que, na beira do rio, tinha uma cabocla que havia dado à luz, e a criança tinha morrido. E que, por isso, ele tinha de levar o recém-nascido para a cabocla criar.
A sua mulher demorou a aceitar aquela conversa. Mas, por fim, terminou aceitando. Então o pescador levou a criança. E, tendo chegado ao rio, atirou o meninozinho na água, no lugar de onde tinha saído a voz.
Lá no fundo do rio, o meninozinho foi dar num palácio muito rico. E foi criado lá, até rapazinho. Mas nunca havia visto ninguém. Pois foi aí que, certa vez, lhe apareceu um homem e foi logo lhe dizendo:
- Eu sou o seu pai. Eu vou ter de fazer uma viagem de quinze dias. Agora, você vai ficar aqui com estas chaves (e lhe entregou um maço de chaves), mas não abra com elas nenhuma porta. Se me desobedecer, quando eu voltar, você vai morrer.
O rapaz ficou e cumpriu fielmente a recomendação. No fim de quinze dias, chegou o pai e lhe disse:
- Então, está tudo direito?
O rapaz lhe disse que sim. Passaram-se mais quinze dias. No fim dos quinze dias, o homem lhe disse:
- Vou fazer uma nova viagem de mais quinze dias. Fique aí com as chaves, e não bula em nada.
O rapaz ficou. Só que dessa vez não se conteve. Quando abriu uma porta, havia lá dentro três enormes caldeiras: uma que estava fervendo ouro; outra que estava fervendo prata; e mais outra que estava fervendo cobre. Aí, o rapaz meteu o dedo na de ouro e saiu com o dedo dourado. Limpava, limpava, e nada de sair o ouro. Rasgou uma tirinha de pano e amarrou no dedo.
Abriu outro quarto. E viu três cavalos muito gordos: um preto, um branco e um castanho. Os cavalos, em lugar de capim, tinham era carne pra comerem.
Abriu outro quarto. E encontrou um leão muito grande e gordo. O leão, em lugar de carne, tinha capim pra comer.
Abriu outro quarto. E viu uma mesa muito grande, cheia de gavetas: numa tinha uma porção de papeizinhos brancos dobrados; noutra, uma porção de papeizinhos azuis dobrados; e numa noutra, uma porção de armas: espingardas, espadas, etc.
Então, o rapaz não quis bulir em nada. E tornou a fechar tudo. No fim de quinze dias, chegou o pai.
- Então, está tudo direitinho? - o pai lhe perguntou.
- Tudo, tudo. Não buli em nada.
De tudo quanto o rapaz tinha visto, o que lhe chamava mais a atenção era a carne para os cavalos comerem, e o capim para o leão. Então, ele fez o plano de trocar as comidas.
No fim de quinze dias, o pai tornou a fazer outra viagem. O rapaz, logo que se viu sozinho, foi ao quarto dos cavalos e abriu-o. Foi pegando na carne para tirar, e um cavalo lhe disse:
- Não faça isso não. Não bula em nada, senão você morre, porque seu pai lhe mata. Agora, se você quiser sair daqui, vá ao quarto onde tem a mesa. Tire dois papéis: um azul e outro branco. Tire boa roupa e se vista. Tire boas armas e se arme. Monte-se em um de nós. Vá puxando outro. E, quando seu pai chegar, ele vai seguir você. E, quando ele estiver pega não pega, você largue um dos papéis. Depois, largue o outro. E deixe o resto por minha conta.
Assim, o rapaz fez tudo o que o cavalo lhe mandara fazer. Tem mais, o cavalo também lhe recomendou que ele metesse a cabeça na caldeira de ouro e dourasse os cabelos.
O rapaz dourou os cabelos, aprontou-se, armou-se, pegou dois papéis e meteu no bolso. Montou no cavalo castanho e foi puxando o branco. Para mais incomodar o pai, tirou o capim do leão e deu ao cavalo preto, que ficou. E pegou a carne e deu-a ao leão.
Seguiu o rapaz viagem a toda a pressa. Mas, no fim de quinze dias, o homem chegou ao palácio. E, depois de ver tudo desarranjado, ficou danado da vida. Montou-se no cavalo preto e seguiu atrás do rapaz.
Depois de muito andar, avistou-o. Aí o cavalo em que ia o moço lhe disse que largasse o papelzinho branco. O moço largou-o e surgiu então uma neblina tão espessa que não se via nada. Mas o cavalo preto era muito bom e conseguiu romper a neblina. Mas já o rapaz ia longe.
Depois de muito andar, o pai já o ia avistando, quando ele soltou o outro papel. E surgiu dessa vez um espinhal tão cerrado que ninguém podia atravessar. O homem disse ao cavalo preto:
- Eu desencanto você, se você me passar esta mata de espinhos.
O cavalo lhe respondeu:
- Tire-me os arreios e vá montado em osso, que eu passarei.
O homem tirou os arreios e montou em osso. Quando o cavalo se viu no meio do espinhal, atirou-o ao chão e lá deixou-o e seguiu para diante. E o homem lá morreu. E o cavalo encontrou-se com os outros e seguiram todos três.
O rapaz já tinha cansado o cavalo castanho e montou-se no branco. Foram seguindo. Depois de muito andar, chegaram perto de uma cidade. Aí os cavalos lhe disseram:
- Agora nós ficamos aqui encantados nesta pedra, e o senhor deixe também aqui suas armas e roupas. Siga para a cidade. Ali adiante encontrará um boi morto. Abra-o, tire a bexiga dele, sopre-a e bote-a na cabeça, para esconder os seus cabelos dourados. Vá e siga a sua vida. Mas, quando precisar de alguma coisa, venha aqui na pedra e nos peça.
O rapaz seguiu. Encontrou o boi morto, abriu-o, tirou a bexiga dele, botou-a na cabeça, e entrou na cidade. Adiante, encontrou um palácio. Bateu à porta. E lhe apareceu o velho jardineiro. E lhe perguntou o que queria.
O rapaz lhe respondeu que queria um emprego para ganhar a sua vida. O jardineiro teve pena dele. E o empregou como seu ajudante. Era ali a casa do rei. O jardineiro perguntou ao rapaz por seu nome. Ele respondeu que não tinha nome.
- Pois você vai se chamar, a partir de agora, de Careca. - disse-lhe o jardineiro.
Passaram-se muitos tempos, e o Careca ia vivendo em paz. Uma vez, ele se pôs debaixo de umas laranjeiras e tirou a bexiga da cabeça para ver os seus cabelos. E a filha mais moça do rei, que estava na janela, viu os cabelos dourados e ficou apaixonada pelo Careca.
O jardineiro tinha o costume de levar todas as manhãs um ramalhete para cada uma das filhas do rei, que eram três. No dia seguinte, ele foi levar os ramalhetes. E a princesa mais moça lhe disse:
- De amanhã em diante, eu quero que o Careca traga o meu ramalhete.
O rei e as irmãs da princesa riram dela muito. Mas a moça insistiu tanto que o Careca, todos os dias, lhe ia levar o ramalhete.
Passaram-se tempos, e houve no reino umas grandes cavalhadas. Todos os do reino iam para as cavalhadas. Mas só não o Careca. Foi aí que ele disse ao jardineiro que queria ir à casa do ferreiro, para mandar fazer uma faquinha. E o jardineiro deixou-o ir.
Depois que todos saíram, o Careca também saiu. E foi até a pedra. E contou aos cavalos o que havia. Então, saiu o cavalo castanho todo arreado. O moço aprontou-se, tomou uma lança, soltou os cabelos e apresentou-se nas cavalhadas. Fez a corrida, tirou a argolinha e ofereceu à filha mais moça do rei. Ela lhe deu uma fita verde, que ele amarrou na lança. Todos ficaram admirados daquele lindíssimo moço. Mas ninguém sabia quem era ele.
O rapaz saiu a toda a pressa, e ninguém mais o viu. Quando o rei e as princesas chegaram a casa, já lá se achava o Careca na sua roupa de costume. O jardineiro contou-lhe então tudo, falou na boniteza das cavalhadas e no moço de cabelo dourado que tinha aparecido e que ninguém sabia quem era. E acabou de falar lhe dizendo que, se no dia seguinte aquele desconhecido voltasse, seria preso, porque o rei iria mandar colocar tropa para prendê-lo, quando ele quisesse voltar e desaparecer.
No dia seguinte, pela manhã, foi o Careca levar suas flores à princesa caçula. E ela estava doente de paixão, mas tendo uma desconfiança de que ele fosse o mesmo moço que aparecera nas cavalhadas.
À tarde, houve novas cavalhadas. E o Careca disse ao jardineiro que ia de novo ver a faquinha, porque o ferreiro não tinha ainda lhe dado. Largou-se para a pedra e fez aparecer o cavalo branco, com arreios ainda mais ricos do que os primeiros. Soltou a cabeleira, aprontou-se e partiu para as cavalhadas.
Havia mais povo ainda do que nas primeiras. E lá se estava a tropa para prendê-lo, quando ele quisesse voltar. E então ficaram todos ainda mais espantados do que na primeira vez. Quando se deu o sinal para a corrida, o moço partiu, tirou a argolinha e deu à princesa mais moça. Ela lhe deu uma fita encarnada, que ele amarrou na lança e partiu a galope.
A tropa cercou-o, mas ele saltou por cima e desapareceu. Quando todos chegaram ao palácio, já o Careca lá estava na forma de costume.
A princesa mais moça começava a definhar. No dia seguinte, tornou a avistar o Careca, debaixo de um caramanchão, mirando os próprios cabelos, que eram dourados e compridos. Ficou a princesa mais alegre e teve a certeza de que aquele era o mesmo moço das cavalhadas.
À tarde, houve outra cavalhada, que era a terceira e última. Todos foram, e o Careca tornou a sair, desculpando-se de ir buscar a faquinha. Foi até a pedra e fez aparecer o cavalo preto, com os arreios lindíssimos.
Partiu. E, chegando ao ponto das cavalhadas, encontrou muito reforço de tropas para o prender. Mas o Careca não teve medo. Na hora da corrida, avançou, tirou a argolinha e ofereceu à princesa da sua escolha. E partiu a galope.
Fecharam quadrado para prender o Careca. Mas o cavalo voou por cima e perdeu-se na corrida, que ninguém mais o viu. Quando o rei chegou ao palácio, já estava lá o Careca muito a seu gosto. E assim nunca ninguém desconfiou que o Careca era o moço rico das corridas, senão a princesa mais moça.
Ora, aí nesse reino costumava, de tempo em tempo, aparecer uma fera, que tudo devastava. Comia muita gente, mas ninguém podia acabar com ela. O rei tinha dito que quem matasse a fera havia de se casar com a princesa mais velha. Ninguém se atrevia. O Careca, sabendo disso, foi até a pedra e contou aos cavalos. Saiu o cavalo preto e disse-lhe que se montasse nele, amarrasse-lhe no peito um grande espelho e avançasse contra a fera, porque a fera, vendo o seu retrato no espelho, havia de supor que era outra fera, ficaria atrapalhada, e o moço a poderia então matar. Assim fez o rapaz. Matou a fera, cortou-lhe as sete pontas das sete línguas. Ninguém viu isso.
No dia seguinte, apareceu a fera morta. E foram botados editais para ver quem havia matado a fera. Só que ninguém aparecia. Então, o rei julgou-se dispensado quanto à sua filha mais velha e, assim, decidiu-se a casar todas três filhas quanto antes e no mesmo dia.
Mandou procurar príncipes. Mas a caçula declarou ao pai que só se casaria com o Careca. O rei ficou muito desgostoso, mas não teve outro remédio. Então, o rei ordenou que iria dar um grande banquete no dia do casamento. E deu a ordem que o banquete deveria só ter pássaros caçados pelos futuros genros.
Todos os três saíram a caçar, cada um para seu lado. Nenhum matou nada, a não ser o Careca, que foi até a pedra, e os cavalos lhe deram aves a valer.
Um dos noivos o encontrou. E, sem o conhecer, pediu-lhe que vendesse os pássaros. O Careca, então, aceitou, mas com a condição de o comprador lhe passasse uma declaração, dizendo como havia comprado as aves. Assim, o príncipe aceitou e passou a declaração. O Careca guardou.
Afinal, chegou o dia do casamento. Todos se apresentaram muito bem prontos, e o Careca humildemente vestido. No jantar, houve muita alegria, mas o Careca, coitado, lá para um canto.
No fim de tudo, o rei disse que, antes de todos se despedirem, queria que cada um dos genros contasse uma história. O marido da princesa mais velha levantou-se e disse para todos:
- O que tenho pra contar é que quem matou aquele bicho, que a todos fazia medo, fui eu. E eu não disse há mais tempo porque queria me casar com a princesa por escolha natural e não porque tivesse a promessa do casamento por matar a fera.
E mostrou os pedaços da língua da fera. Foi aí que, em seguida, se levantou o marido da segunda princesa e disse para todos:
- O que eu tenho a dizer é que quem caçou todos estes pássaros, para esta festa, fui eu.
Por fim, levantou-se o Careca e disse para todos:
- A minha história é que os dois genros do rei mentiram. Quem matou a fera fui eu, e aqui está a prova. Estas é que são as pontas das línguas, e aqueles são os cotocos das línguas. E ainda, quem fez a caçada fui eu, e a prova é esta declaração que aqui tenho e que qualquer um de vocês podem ler. Além do mais, o moço que deixou todos surpresos em todas as corridas fui eu. E a prova são as fitas que aqui tenho.
Aí ele tirou a bexiga da cabeça e todos o reconheceram. Ficaram os dois príncipes muito envergonhados, e a princesa mais moça quase doida de contentamento. E, dessa maneira, ele se casou com a princesa e foram viver felizes para sempre.