Literatura do Folclore: O enigma do ferreiro e o rosto - conto

No tempo de um rei muito conhecido, havia um ferreiro que trabalhava o ano inteiro no seu ofício. Ele não guardava os domingos nem a Páscoa. Como também, nem os dias santos, por mais solenes que fossem as festas. Ele só queria trabalhar, trabalhar, todos os dias, até ganhar quatro soldos. Mas, depois disso, não dava mais nenhuma martelada, ainda que fosse um trabalho encomendado, ou um de maior urgência. Não adiantava, mesmo lhe pagando muito bem.

Um dia, uma pessoa se dirigiu ao imperador e denunciou o ferreiro. Ele falou ao rei que o ferreiro profanava os dias santificados, trabalhando igual aos outros dias. Foi aí que o imperador o mandou chamar urgentemente à sua presença. E perguntou ao ferreiro se era certo o que vieram lhe denunciar. Mas o ferreiro, sem nenhum medo, não negou. Então, o rei lhe perguntou:

- Meu Senhor, respondeu-lhe o ferreiro, eu faço isso é para atender às minhas obrigações. Eu tenho que ganhar quatro soldos, todos os dias. Quando eu consigo, eu paro de trabalhar, até o dia seguinte.

- Por que tu estás quebrando o preceito dos dias santificados?

- Então me diga: o que tu fazes com esses quatro soldos?

- Meu Senhor, eu divido eles em quatro partes iguais. Uma, eu devolvo. A outra parte, eu faço doação. Já a terceira, eu jogo fora. E a quarta, eu invisto na minha subsistência.

O rei se perturbou com aquela resposta. Mas insistiu:

- Pois me explique isso melhor, ferreiro.

O ferreiro já ficou um pouco desconfiado. Mas criou coragem e começou a explicar para o imperador:

- A doação, meu Senhor, eu faço ela, pagando impostos. A devolução é devida ao meu pai, que é tão velho e pobre, e que já não pode ganhar o próprio sustento. Eu faço dessa maneira porque o meu velho pai me emprestava quando eu era ainda criancinha, e eu não podia trabalhar. Desperdiço a outra parte, dando ela à minha mulher, para os seus gastos, que é o mesmo que eu jogar fora, pois ela não sabe fazer nada além de comer e beber. E eu invisto na minha subsistência o restante, quer dizer, na manutenção da minha casa.

O imperador pensou, pensou: “Se eu o mandasse parar de fazer assim, eu o colocaria injustamente em muitos apertos. Mas vou impor a ele uma condição severa. E, se ele não a cumprir, ele vai me pagar caro”. Aí, levantando os olhos para o ferreiro, disse-lhe:

- Vá com Deus, ferreiro. Mas essa tua explicação, que tu acabaste de me dizer, eu te ordeno: não poderás contá-la para ninguém. Escuta bem: não fale tu uma só palavra sobre isso, antes que veja meu rosto cem vezes. Se tu me desobedeceres vai ter de pagar cem libras de multa.

Ao sair dali, o ferreiro ficou a meditar: para ele, um simples ferreiro, não era nada fácil ver o rosto do rei cem vezes. E, de tanto meditar, o ferreiro chegou a seguinte conclusão: já que, para ele, era muito difícil ver o rosto do rei, quanto mais daquele tanto, o que significaria que ele deveria se calar sobre aquele assunto definitivamente.

No dia seguinte, o imperador resolveu apresentar aos seus sábios um enigma. E lhes pediu que explicassem o sentido oculto da moeda devolvida, da moeda doada, da moeda jogada fora e da moeda investida. Deu-lhes, então, oito dias de prazo para a resposta.

Depois de muito discutirem, e sem acharem alguma solução, os sábios concluíram que o assunto deveria guardar relação com a presença do ferreiro ante o imperador. Mas só que nenhum deles sabia o que se passara entre os dois. E, não achando uma outra saída, resolveram eles espionar o ferreiro.

Foram disfarçados até a oficina do ferreiro. Pediram-lhe que ele desse a explicação. Mas o ferreiro se conservou de boca calada. Ofereceram-lhe, ainda, dinheiro em troca da informação. Foi aí que o ferreiro, depois de pensar consigo mesmo, lhes respondeu:

- Já que os senhores estão muito interessados, arranjem cem libras de ouro.

Quando os senhores me trouxerem essa quantia, aí eu darei aos senhores a explicação.

Vendo os sábios que seria tempo perdido ficar insistindo com o ferreiro, e temendo que se esgotasse o prazo de oito dias, fizeram entre si uma quota e, em seguida, foram entregar ao ferreiro as cem libras. Com bem calma, o ferreiro foi pegando as moedas, uma por uma. Olhava com atenção, tanto na frente como no verso de cada moeda. Observou, então, que todas as moedas apresentavam-se com a efígie do imperador, em relevo. De um lado, a figura equestre. Do outro, a face do imperador. Assim, depois de terminar esse lento ritual, o ferreiro explicou aos sábios o caso, exatamente como o explicara ao imperador. E os sábios saíram dali bastante contentes.

Quando se esgotou o prazo de oito dias, os sábios se apresentaram ao imperador e lhe deram a explicação pedida. Aquilo deixou o rei muito surpreso e até irritado, uma vez que estava coincidindo com as mesmas palavras do ferreiro. E suspeitou, de imediato, que o ferreiro tivesse batido com a língua nos dentes. E pensou: “Esses sábios não seriam capazes de descobrir sozinhos toda a explicação. Eles devem ter ameaçado o ferreiro, ou até o açoitado, a fim de obter o segredo. Então, eu vou chamar até aqui o ferreiro. E ele vai ter de me pagar toda a dívida atrasada”. Depois de pensar, resolveu o imperador mandar chamar o ferreiro. E foi logo lhe inquirindo, ao vê-lo diante de si:

- Parece que tu, apesar da minha proibição, falaste mais do que devias. Tu revelaste o segredo que eu te ordenei que tu não falasses a ninguém. Agora, ferreiro desleal, tu vais ter de pagar amargamente a tua leviandade.

- Meu Senhor, meu Senhor, implorou nervoso o ferreiro ao rei, vós podeis fazer o que vós quiseres comigo. Vós podeis fazer o que vos agrada. Eu me entrego a vós como me entrego a um pai e senhor muito amado. Mas eu não desobedeci  as vossas ordens, que eram de guardar o segredo até conseguir ver a vossa face cem vezes. Eles todos perderam tempo, os que tentaram obter de mim o segredo antes de haver cumprido aquela condição. Mas eu confesso ao meu Senhor: depois que os homens me apresentaram cem libras de ouro e que, na presença deles,  eu contemplei vossa augusta face em cada uma delas, não tive dúvidas em contar a todos eles o que eu sabia. Não me parece, portanto, que eu vos tenha ofendido. Além do mais, eu, tendo feito assim, me livrei da presença insistente e incômoda dos vossos sábios.

Diante daquela resposta inteligente, o rei não teve outra alternativa. Disse para o ferreiro, até com um pequeno sorriso no rosto:

- Vá com Deus, vá com Deus, ferreiro. E que o bom Deus te dê muita sorte, pois tu foste muito, muito mais inteligente do que todos os meus sábios juntos.

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