Literatura do Folclore: O lobisomem - conto

Noutros tempos, um monarca, que reinava em grande país, tinha por esposa uma formosa rainha e só contava com uma filha. Esta se tornou a menina dos olhos dos pais, os quais a amavam mais que a qualquer outra coisa no mundo, além de ver nela a alegria que lhes proporcionaria quando ela crescesse. Mas não é raro sucederem coisas inesperadas. Antes que a princesa fosse moça, sua mãe, a rainha, adoeceu para morrer. Podemos facilmente imaginar a tristeza não só na corte como também no país inteiro, onde a rainha era estimadíssima. E, depois da tragédia, o rei muito triste não desejou contrair novas núpcias. A sua única alegria era constituída pela pequena princesa.

Passou-se muito tempo. A princesa tornava-se, de dia para dia, mais bela. Do pai recebia tudo quanto ela desejava. Dispunha, além disso, de inúmeras criadas para lhe satisfazerem os menores desejos. Havia, entre elas, uma criatura que já fora casada e tinha duas filhas. Era uma senhora de aspecto muito agradável, possuía grande habilidade no falar, era meiga aparentemente, serviçal até no coração, porém nutria a intriga e a mentira. Depois da morte da rainha, cuidou imediatamente de tornar-se esposa do monarca, para ver suas filhas tratadas como princesas. Com tal intuito, soube atrair a jovem princesa. Teceu-lhe os maiores elogios, iludiu-a. Terminava todas as conversações manifestando o desejo de ver o rei tomar uma esposa. A princesa, achando que ela possuía mais prática no assunto, perguntou-lhe que espécie de mulher deveria o rei seu pai tomar por esposa. E ela, Doce qual mel, respondeu-lhe:

- Não me fica bem dar conselhos em tal assunto. Mas creio que ele deve desposar uma criatura extremamente bondosa para com a princesa. Se eu tivesse a sorte de ser escolhida, fazia tudo o que a princesa apreciava. Quando quisesse lavar as suas mãozinhas, eu seguraria a bacia e lhe apresentaria a toalha.

Disse aquilo e muito mais. A princesinha, como verdadeira criança, acreditou piamente. Desde então, não deixou mais tranquilo o pai. Pedia-lhe reiteradamente que se cassasse com a bondosa dama da corte. Mas ele não cedia. No entanto, a jovem não deixava de tocar no assunto, repetindo sempre as palavras da hipócrita dama da corte. Um dia, respondeu-lhe o rei:

- Estou percebendo que vou verificar o que você meteu na cabecinha, muito embora seja contra a minha vontade. Mas há uma condição.

- Qual? - indagou a princesa radiante.

- Se torno a me casar é por causa dos seus insistentes pedidos. Agora, se no futuro você ficar contrariada com a sua madrasta, ou com suas novas irmãs, eu não quero ouvir queixas.

A princesa prometeu ao pai de não lhe falar nada e, assim, ficou resolvido que o rei desposaria a dama da corte fazendo-a rainha. Com o tempo, transformou-se a princesinha na mais formosa criatura do país. Já as filhas da rainha eram feias e más. Não havia quem reconhecesse nelas a menor qualidade. Inúmeros mancebos vindos de todas as direções se apresentavam como pretendentes da princesa, mas nenhum queria saber das filhas da rainha. Aquilo enfureceu a madrasta que, no entanto, não deu a perceber o que lhe ia no coração, continuando ela sempre amável e meiga como antes.

Surgiu, entre os pretendentes, à mão da belíssima princesa um príncipe oriundo de outro reino. Era ele jovem e corajoso. Os dois amaram-se e trocaram juras de amor. A rainha observava tudo com maus olhos, pois teria gostado que o príncipe tivesse solicitado a mão de umas de suas filhas. Resolveu ela, portanto, que os dois jamais pertenceriam um ao outro. E, desde logo, pensou exclusivamente no meio de separá-los. E a oportunidade apareceu-lhe. Tendo um exército inimigo invadido o país, viu-se o rei obrigado a partir para a frente da batalha. A princesa compreendeu, então, quem era realmente a falsa madrasta.

Mal o soberano partiu, a rainha tirou a máscara e apresentou-se má e dura. Não se passava um dia sem que a princesa não tivesse de ouvir repreensões e palavras ásperas. As filhas da rainha não lhe eram absolutamente inferiores na medonha maldade. Pior ainda era tratado o pretendente, o jovem príncipe. Um dia, tendo ido ele caçar, perdeu-se. A rainha, valendo-se da feitiçaria, em que era muito hábil, transformou-o em lobisomem, obrigado a viver o resto da vida na floresta. Ao cair da noite, os componentes do séquito do príncipe, não o vendo regressar, voltaram à corte. E é fácil imaginar o desespero da jovem princesa ao saber do desaparecimento do amado. Chorou inconsolavelmente dia e noite. Já a rainha ria-se com prazer, muito contente por tudo se ter passado de acordo com os seus nefastos desejos.

Um belo dia, a princesa, achando-se sozinha no seu aposento, teve a ideia de ir à floresta onde o príncipe amado desaparecera. Procurando a madrasta, pediu-lhe permissão. A rainha, a princípio, negou-se a lhe ouvir a súplica, acostumada como estava a dizer com extrema facilidade não, e só muito a custo e uma ou outra vez sim. A princesa implorou a ela tanto que, finalmente, a rainha concordou, porém mandando que uma de suas filhas a acompanhasse para vigiá-la. Daí houve discussão e longa, pois nenhuma das filhas queria acompanhá-la. Ambas apresentaram desculpas, dizendo a mãe que não podia haver o menor prazer em seguir uma jovem que não fazia outra coisa senão chorar. Finalmente, a rainha, valendo-se de sua autoridade, ordenou que uma das duas, nem que fosse contra a vontade, acompanhasse a jovem princesa. Assim, a princesa e a acompanhante deixaram o palácio e rumaram para a floresta.

Na floresta, a princesa ficava a ouvir o canto das aves e só pensando no amado, que não mais existia. Já a filha da rainha segui-a muito aborrecida. Depois de caminharem algum tempo, chegaram a uma choupana, bem no coração da floresta. A princesa, dominada por grande sede, quis entrar, com as folhas da rainha, na choupana, para obter um pouco de água. Mas a filha da rainha, zangadíssima, foi-lhe contra:

- Não basta eu ter sido obrigada a vir com você para esta solidão? Agora, ainda pretende você que eu, uma princesa que sou, entre com você numa choupana miserável como esta? Não, não e não. Se quiser, vá sozinha.

A princesa não hesitou. Entrou e viu, num banco sentada, uma anciã tão combalida pela idade que parecia a todo instante rolar pelo chão. Saudou-a com amabilidade:

- Boa noite, mãezinha. Posso lhe pedir um gole de água?

- De muita boa vontade eu lhe dou, respondeu-lhe a anciã. - Mas quem é você, que entra na minha choupana e tão amavelmente me cumprimenta?

A jovem explicou-lhe que era a filha do rei, que saíra a passear para distrair-se, para esquecer uma grande dor.

- De que dor se trata? - indagou-lhe a anciã.

- Motivos não me faltas para eu ser triste, disse-lhe  a princesa. - Perdi o homem a quem amo e só Deus sabe se tornarei a vê-lo um dia.

A princesa contou a anciã como havia ocorrido a desgraça. Enquanto ela falava, quentes lágrimas lhe deslizavam pelas faces, capazes de provocar a compaixão de quem quer que fosse. Quando terminou a narrativa, disse-lhe a anciã:

- Fez muito bem em me contar o motivo da sua dor. Tenho grande experiência e talvez possa dar-lhe um bom conselho. Pois me ouça: quando você sair daqui, vai ver crescer um lírio, que não é como os outros. Ele possui estranhas qualidade. Aproxime-se dele quanto antes e colha-o. Se conseguir colher, não haverá perigo, porque você chegará a ver aquele que lhe ensinará a fazer o que é preciso fazer.

Despediram-se as duas. A princesa, muito agradecida, partiu. A anciã permaneceu sentada no banco. Quanto à filha da rainha, sempre do lado de fora, não parava um instante de resmungar contra a demora. E quando a princesa saiu, ela ouviu duas palavras. Não lhes deu atenção, porém cuidou apenas de como poderia encontrar o lírio.

As duas continuaram a caminhar pela floresta. De repente, a princesa viu, bem na sua frente, uma belíssima flor branca. Correu rapidamente para colhê-la, mas a flor desapareceu, para aparecer um pouco mais adiante. A princesa, com a atenção toda voltada para a misteriosa flor, não deu a menor importância ao chamado da filha da rainha. Continuou a correr. Mas, quando ia apanhando o lírio, ele desaparecia, para reaparecer um pouco mais na frente. Assim, se verificou, por algum tempo. E a princesa foi penetrando cada vez mais na densa floresta. O lírio surgia-lhe a alguns passos na frente, e cada vez maior e cada vez mais belo. De súbito, viu-se a jovem na encosta de elevada montanha. E ela, olhando para o topo, distinguiu o lírio sobre uma pedra nua, alvo, muito alvo, resplendendo como estrela. A princesa começou a galgar a montanha, não prestando atenção à coisa nenhuma, a não ser a maravilhosa flor. Finalmente, no topo da montanha, a flor não recuou mais. A princesa deteve-se. Inclinando-se, colheu-a e guardou-a no seio. Tão contente, tão radiante ficou que se esqueceu da filha da rainha e de todos.

De súbito, lembrou-se da madrasta. E pôs-se a pensar no que diria após tão demorada ausência. Olhou em redor para achar o caminho de volta ao palácio. O sol desaparecera e só um restinho de luz iluminava o topo da montanha. Lá embaixo, a densa e sombria floresta não lhe indicava o caminho de regresso. Muito triste, por não ver outra solução senão passar a noite naquela montanha, sentou-se, apoiou o rosto nas mãos e chorou, lembrando-se da malvada madrasta, das invejosas filhas da rainha, de todas as duras palavras que certamente ela iria ouvir quando voltasse. Lembrou-se também do pai, o rei, que estava guerreando, e do amado, aquele que ela nunca mais o veria. As estrelas começaram a brilhar, e ela continuava sentada no mesmo lugar. De súbito, uma voz a saudou:

- Boa noite, formosa donzela. Por que está sentada aí tão sozinha e tão triste?

Ela se levantou imediatamente, perplexa. Olhando em redor, só viu um velho anãozinho de aparência muito modesta.

- Ah, tenho motivo para estar triste, respondeu a princesa por fim. - Perdi o homem amado e, agora, acabo de perder-me na floresta. Tenho medo de que as feras me devorem.

- Ora, retrucou o velhinho, não se preocupe com isso. Se me obedecer em tudo, eu vou ajudar você. A princesa alegrou-se com aquelas palavras. O anão, puxando um isqueiro, disse-lhe:

- Linda jovem, em primeiro lugar faça fogo.

Ela lhe obedeceu. Reunindo folhas e raminhos secos, acendeu um fogo no topo da montanha. As chamas subiram para o céu. O velho prosseguiu:

- Agora, continue andando, que há de encontrar um caldeirão de breu. Traga-o aqui.

A princesa lhe obedeceu. O anão ordenou-lhe então:

- Ponha o caldeirão no fogo.

Ela o fez. Quando o breu começou a ferver, disse-lhe  o anão:

- Atire o lírio no caldeirão.

A princesa, ao ouvir aquela ordem, pareceu-lhe má. - e implorou ao velhinho que lhe deixasse a flor. Mas ele insistiu com energia:

- Você não me prometeu que me obedeceria em tudo? Não se arrependerá.

Ela, desviando o olhar, atirou o magnífico lírio ao caldeirão. Que tristeza perder tão linda flor!

No mesmo instante, ouviu-se na floresta um uivo abafado, de animal selvagem, que se foi aproximando, aproximando cada vez mais, até se transformar em medonho ulular, tão poderoso que as montanhas estremeceram. De súbito, ouviu-se o crepitar de galhos, as moitas se abriram e um grande lobo cinzento se aproximou da montanha. Vinha correndo. A jovem, terrorizada, quis fugir, mas o anão lhe ordenou:

- Vamos, vamos, corra para a beira do topo da montanha e meta o caldeirão na cabeça do lobo, quando ele aqui chegar.

A princesa, embora com muito medo, fez tudo quanto o anão mandou. Pegou o caldeirão, correu para a beirada e meteu-o na cabeça do lobo, quando o animal se aproximava. Sucedeu, então, uma coisa terrível: o lobo desfez-se da grossa pele cinzenta e, no seu lugar, surgiu um formoso mancebo. A princesa, fitando-o bem, reconheceu nele o amado. É fácil imaginar o estado de espírito da pobre jovem. Estendeu os braços, sem poder articular uma palavra, tonta de felicidade. O príncipe abraçou-a com ternura, agradecendo-lhe a libertação. Não se esqueceu do bom anãozinho, a quem lhe dirigiu palavras de gratidão pelo auxílio que lhe prestara. Sentaram-se, então, no topo da montanha e conversaram. O príncipe narrou de que maneira fora transformado em lobisomem e como se perdera na floresta. Quanto à princesa, ela falou da sua dor, das lágrimas derramadas, enquanto ele estivera desaparecido. Passaram, assim, a noite e só perceberam ao ver que as estrelas se iam apagando, para darem lugar a um novo dia. Com o despontar do sol, descobriram uma ampla estrada que conduzia para o palácio. Do alto daquela montanha, via-se todo o país. E o anão disse-lhe :

- Formosa donzela, vire-se. Está vendo alguma coisa?

- Sim, um cavaleiro montado em fogoso corcel.

- Pois é um mensageiro de seu pai, que está regressando com o exército.

A princesa, contentíssima, quis correr logo ao encontro do pai. Mas o anão a reteve:

- Espere, minha filha, ainda é cedo. Vejamos antes o que vai suceder.

Passou-se algum tempo. Os raios de sol caíam em cheio sobre o palácio real. O anão dirigiu de novo a palavra à princesa:

- Vire-se, formosa donzela. Está vendo alguma coisa lá embaixo?

- Sim, gente saindo do palácio de meu pai. Alguns entram na estrada, outros vêm para a floresta.

- São os servidores de sua madrasta. Alguns rumam ao encontro do rei para dar-lhe as boas vindas, os outros vêm a floresta à procura de você.

A jovem, inquieta, quis descer, mas o anão reteve-a:

- Mais um pouco de paciência e vejamos o que vai suceder.

Passou-se algum tempo. A princesa continuava a olhar para a estrada, pela qual deveria surgir o rei.

- Formosa donzela, vire-se. - ordenou-lhe de repente o anão. - Está vendo nalguma coisa lá embaixo?

- Sim. Todos se movem no palácio, que está sendo ornado de preto.

- É obra de sua madrasta e dos servidores. Querem dar a entender a seu pai que você morreu.

- Me deixe ir. - suplicou a jovem. - Quero poupar tamanha dor a meu pai.

- Não, minha filha, espere. Ainda é muito cedo. Tratemos de ver o que vai acontecer.

O sol chegou ao ponto mais alto do céu, uma cálida aragem passou por sobre os campos e a floresta. O príncipe e o anão continuavam no alto da montanha. De repente, viram uma nuvenzinha na linha do horizonte. A nuvenzinha foi crescendo, crescendo, aproximando-se cada vez mais da estrada, deixando entrever lampejos de armas. Dava para distinguir elmos e estandartes, para ouvir tinir de espadas e relinchar de cavalos. Finalmente, surgiu a bandeira do soberano. A princesa, radiante, quis descer para correr ao encontro do excelente pai. Mas o anão ordenou-lhe:

- Formosa donzela, vire-se. Está vendo alguma coisa perto do palácio?

- Sim, respondeu ela. - Estou vendo minha madrasta e minhas irmãs cobertas de luto e segurando lenços diante do rosto, como que chorando amargamente.

- Estão fingindo que choram a sua morte. Espere mais um pouco para ver o que sucede.

Alguns instantes depois, tornou o anão a perguntar à princesa:

- Está vendo alguma coisa?

- Sim. Os criados estão carregando um esquife preto. Meu pai manda que o abram. A rainha e suas filhas ajoelham-se, e meu pai as ameaça com a espada.

- Seu pai quer ver o seu cadáver, minha filha, e sua madrasta se vê obrigada a dizer a verdade.

- Me deixe ir consolar meu pai, por favor.

- Ouça o meu conselho. Fique aqui mais algum tempo. Ainda não vimos tudo.

Pouco depois o anãozinho perguntou à princesa:

- Está vendo alguma coisa lá embaixo?

- Sim. Meu pai, minha madrasta, as filhas dela, toda a comitiva, todos vêm para cá.

- Estão à sua procura. Desça e pegue a pele do lobo.

Ela obedeceu ao anão.

- Agora, prosseguiu o anão, ponha-se na beirada da montanha.

Ela o seguiu à risca. Naquele momento, a rainha e suas filhas acharam-se exatamente ao pé da montanha. O anão lhe ordenou:

- Atire para baixo, formosa donzela, a pele do lobo.

A princesa lhe obedeceu. A pele de lobo caiu exatamente sobre a malvada rainha e suas filhas. Verificou-se, então, um grande milagre. Mal a pele tocou aquelas três péssimas criaturas, elas mudaram de aspecto. Uivaram e se transformaram em lobisomens. E correram velozmente para o seio da floresta. Nem bem aquilo havia sucedido, chegou o rei com o seu séquito. Ele, olhando para cima, viu a filha, mas não confiou, a princípio, nos olhos. Julgou tratar-se de um sonho. O anão ordenou a princesa: 

- Formosa donzela, desça já, já, e vá abraçar seu pai.

Ela não vacilou. Pegando a mão do amado, desceu pela encosta. Ao chegar perto do rei, atirou-se a ele, abraçou-o e chorou de alegria. Também o jovem príncipe chorou, no que foi imitado pelo bom rei. Todos se comoveram diante daquele espetáculo. Depois, reinou geral alegria. A princesa contou tudo quanto sofrera por obras da madrasta e de suas filhas. E descreveu a intervenção do bom anãozinho. Quando o soberano se voltou para agradecer ao velhinho, ele havia desaparecido. Ninguém mais o viu. Então, regressaram todos para o palácio. O rei mandou preparar maravilhosa festa e convidou os nobres do reino para o casamento de sua filha com o jovem príncipe. A festa durou vários dias, sempre animadíssima.

Na floresta, quem por ela passa vê uma loba e dois filhotes, sempre a ranger dentes, sempre furiosos...

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