Era uma vez, uma mocinha muito pobre, sem pai, nem mãe. Ela foi mandada trabalhar em casa de uma moleira. Essa moleira era muito gananciosa. Tinha um coração de pedra mais duro que a mó do seu moinho. Pretendia que a orfãzinha girasse, com a pouca força dos braços franzinos a pesada moenda. E não recompensava tanta canseira, mais do que com algumas broas de pão seco e bolorento.
A pobre criatura, comendo pouco e trabalhando demais, não tirando do alimento o suficiente para refazer as energias que gastava no trabalho, andava se consumindo de dia para dia. Estava pálida, magra, débil. Era a imagem da tristeza e da fome. E assim ia.
Até que, numa tarde, passou pelo moinho o poderoso mago da região, disfarçado em mendigo. A moleira estava ausente, e a menina se esbofava. Fazia girar a pesada roda, soltando suor por todos os poros.
O velho não lhe pediu esmola. Também não lhe disse nada. Sentou-se na soleira e ficou olhando a moçoila que, em dado momento, parou para tomar fôlego. E, criando coragem, ela dirigiu a palavra ao desconhecido.
- Penso, bom homem, que deseja um pouco de pão. E eu ficaria contente de poder socorrer o senhor. Infelizmente, nada tenho para lhe dar, nem uma côdea ao menos.
- Não se preocupe, menina. - disse-lhe o velho. - Não vim lhe pedir coisa alguma, Mas eu vim para lhe oferecer.
Aquele bizarro pedinte, devagar, tirou, então do bolso das calças, um trapo cinzento. E entregou-o suavemente à menina.
- Esta noite, ele lhe advertiu, antes de você se deitar, embrulha a cabeça neste farrapo.
E desapareceu, sem dar oportunidade à moçoila de o interrogar, ou, pelo menos, de lhe agradecer.
A donzelinha possuía uma alma límpida e ingênua. Não duvidou nem um segundo do que o velho tivesse boas razões, para lhe dar o presente. E decidiu fazer as recomendações que dele ouvira.
Antes de ir para a enxerga de palha podre, que era a sua cama, envolveu a sua cabeça com o lenço velho. E, dali a pouco, dormiu a sono desatado.
A moçoila sonhou que estava na sala de uma casa desconhecida. Diante dela, encontrava-se uma caixa de madeira. Que poderia estar lá dentro, ela pensou consigo? E, curiosa, tentou abri-la. Inutilmente.
E foi, nessa altura, que apareceu um homenzarrão, quase gigante, vestido de azul. Ele lhe mostrou, na tampa da arca, um buraco muito largo. Depois, sempre em silêncio, agarrou uma sacola de grão e, pacientemente, foi deitando o grão pelo buraco. Ouviu-se, de repente, dentro da caixa, o estrépito de uma mó misteriosa. E, pelos muitos fusos, que ela só então notou existirem nas paredes laterais da caixa, começou a sair bem limpa e muito alva a mais fina farinha que ela jamais tivera lembrança de ter contemplado.
- Agora, aqui está. - disse a moçoila, enfim muito espantada, quando viu a caixa com o furo na tampa, e os furinhos aos lados. A princípio, ela imaginou que ainda estivesse dentro do sono e do sonho: mas teve de se convencer de que o presente do mago era uma assombrosa realidade. E teve, então, início, para ela, uma nova existência, menos difícil. E que era só ela ter paciência de ir colocando o grão, aos punhados, dentro da caixa, pelo buraco da tampa. E aguardar que saísse farinha mais alva e fina que se pudesse desejar.
Breve, todos os campônios das redondezas acorriam, pressurosos, para trazerem seus grãos. E, como houvesse muita censura na maneira pela qual ela tratava a empregada, a moleira, de muito má cara, teve que lhe dar vestidos limpos e novos e fornecer-lhe uma alimentação adequada, para puder impressionar bem a freguesia. Mas, por outro lado, a moleira procurava, de toda maneira, descobrir o segredo daquela produção que, em qualidade, ultrapassava o que se pudesse imaginar e melhor por todo o canto.
Tanto espiou a criada, manda pela moleira, que terminou acabando e dando com a coisa. E, então, um dia, a pretexto de umas compras, mandou a moçoila para a vila. E penetrou no quarto, onde se encontrava a caixa mágica.
Tentou abri-la para examinar o mecanismo misterioso. Não conseguiu. Bateu com o martelo, empregou um formão, tentou um serrote. Nada, nada. Vendo que a criada não conseguia abria caixa, a moleira, correu atrás de um machado. Pegou, então, o machado aguçadíssimo e, com todas as forças de que foi capaz, conseguiu abrir uma fenda na caixa. Só que, pela fenda saiu foi então uma terrível língua de fogo, vermelha e violenta, que envolvera a perversa mulher, reduzindo-a a um punhado de cinzas negras e fétidas.
Quando a menina voltou ao moinho com as compras, não mais encontrou a perversa. A caixa de madeira, no entanto, estava no seu lugar, intacta, ilesa, como se nada houvesse acontecido. Ao lado da moçoila, um anão se sentava na tampa.
- Não procure tua ama nem a espere. - aconselhou a moçoila o tal anão. - Pois fique sabendo que ela recebeu o castigo que, há muito tempo, ela estava merecendo. Ela foi para o inferno, e os diabos estão cuidando dela. Não foi isso que ela mesma preparou? Agora, a moleira, daqui pra frente, é você. E o moinho é só seu.
A moçoila, com a ajuda da arca prodigiosa, ganhou muito dinheiro. No entanto, não esquecia, em momento algum, os pobres. Nem sequer ela se entregou ao ócio. Os órfãos, as viúvas, os velhos os enfermos sem recursos, todos abençoaram o moinho de Coração de Ouro, como todos passaram a chamar à caridosíssima orfãzinha, por toda a região.