Rutor, o soberbo herói, tinha uma pequenina criada loira, delicada e gentil, que se chamava Pilti. A moça amava o patrão, que era nada mais nada menos do que Rutor. Já ouviram falar nele? O forte, o altivo, o belíssimo? E ela o amava demais. E ela sofria a lembrança de que era tão pobre e humilde. Pobre como um punhado de cinzas, humilde como pedra do caminho. Sentia muito porque não poderia lhe ofertar, pelo menos, um presente insignificante.
Um dia, depois de haver cuidado dos seus afazeres domésticos, dirigiu-se para o bosque. Deteve-se numa clareira, bem no recesso da mata. Sentou-se ao pé de uma grossa árvore e ficou a pensar, com o pensamento embebido em Rutor, e na sua impossibilidade do seu sonho de amor.
- Por que estás assim tão acabrunhada? - perguntou ela a si própria, em voz alta. E ela própria lhe deu a resposta: - Porque não tenho nada a oferecer ao meu herói.
Um ouriço, que estava escondido atrás de um arbusto de gengibre, ouvindo o estranho monólogo, saiu do esconderijo.
- Por que, ó graciosa donzela, não ofereces ao teu herói a flor das estações?
- Que flor é essa?
- É uma flor eterna, uma flor mágica. Em todas as estações do ano, ela muda de coloração: é branca no inverno; amarela, na primavera; vermelha, no verão; e violácea, no outono. Vai colhê-la então. Você vai encontrá-la no mais fechado da floresta, ao pé de uma fonte, entre pedras.
- Mas não há perigo dessa flor murchar, como as demais, quando arrancadas do pé?
- Ela não murchará, desde que você mergulhe o cabo dela na água, em que você vai derramar três gotas do seu próprio sangue.
Pilti agradeceu muito o ouriço, beijando-lhe o focinho delicado, que emergia úmido e preto da floresta de espinhos, que lhe envolvia o corpo. E saiu em busca da flor prodigiosa.
Mas, por mais que procurasse nas moitas, que ficavam ao pé de todas as nascentes ocultas, entre pedras, ou nos recantos mais sombrios nas grotas, ou nas lapas, não conseguiu achar a flor. Pela descrição do ouriço, a flor deveria apresentar uma tenra cor violácea, já que se encontrava no outono. Finalmente, mais melancólica do que nunca, Pilti voltou para casa. Naquele dia, fazia muito frio e estava muito escuro. Aí, ela se atirou por terra, desesperada. Chamou pelo patrão:
- Ó Rutor, meu pequeno coração está ao ponto de parar. O velho Gelo que, no outono domina o silêncio noturno, está apertando, com seu dedo glacial, meu pobre peito. Vou morrer, e minha alma voará por cima de um abeto, ou percorrerá os céus, como nuvem de prata. Talvez, quando eu for apenas espírito, eu possa, tendo abandonado o corpo, e com ele a miséria que me constringe, dar-lhe o presente o grande presente com o qual tanto sonhei. Pilti, então, fechou os olhos doces e azuis, parecendo-lhe que ia mesmo morrer.
Mas não morreu. O amigo ouriço, que a contemplava, saiu a correr e chamar todos os esquilos do bosque:
- Venham, amigos, depressa.
O ouriço chamava os esquilos, aqui e ali, nos ocos das árvores. E os esquilos, um pouco pela curiosidade, um pouco porque apreciavam o inofensivo e prestante ouriço, seguiram-no. Chegaram, assim, até perto de Pilti, que já parecia morta.
O chefe da expedição ordenou aos outros esquilos que a reanimassem, com seus bafos quentes e com a carícia de suas peles mornas e veludosas. E eles assim fizeram. Dali a pouco, Pilti abriu os olhos. Sentiu um suave calor penetrar em seus membros entorpecidos, permitindo-lhe que os estirasse. E, a seguir, se sentou. Depois, levantou-se. Estava rodeada dos graciosos bichinhos, que eram cem, duzentos… incontáveis.
- Os meus amigos salvaram você. - disse o ouriço. - Agora, vem comigo. É noite fechada, mas meus olhos enxergam muito bem no escuro. Eu vou levar você ao local exato, onde há a flor das estações.
Os esquilos, felizes de haverem realizado uma boa ação, dispersaram-se na sombra, em todas as direções. E foram contar a aventura noturna aos filhotes.
Pilti foi seguindo o ouriço, que escolheu um caminho bastante complicado. Passaram pelo alto de troncos de árvores, desceram a escarpados barrancos. A menina começou a rasgar a sua roupa nos espinhos e nas moitas, ou ferir-se nos ramos pontudos dos abetos.
Depois de um trajeto longo, penoso e dificílimo, Pilti chegou a sangrar. E, morta de fadiga, consegui chegar com o ouriço a uma brenha, onde cantava a água clara de uma linfa e onde brilhava a suspirada flor violácea, a flor das estações.
Já rompia a alva. Pilti, faminta, extenuada, toda lanhada e dolorida, as roupas em farrapos, conseguiu chegar a sua casa. Bateu à porta do quarto de Rutor. Mas ele dormia e não ouviu as pancadas. Pilti ficou do lado de fora a soluçar.
- Rutor, herói soberbo, não me ouve? Sou a sua escrava, a sua serva. Trago para você um presente, a flor das estações, o mimo mais difícil de se achar.
O herói dormia no seu grande leito de marfim e de ouro. Sonhava com homéricos combates, as claves de bronze, as lanças de aço, os arcos de ouro. Quando o dia, com um sorriso fúlgido entrou no aposento, ele se ergueu e abriu a porta. Foi quando ouviu os gemidos de Pilti.
- Que andava fazendo? - falou-lhe Rutor, em tom de censura. - Está parecendo mais com uma mendiga. E com esses braços arranhados, a escorrerem sangue. Quem foi que lhe chamou a sair de minha casa segura, para ir vagabundear, como tonta, pelos bosques e enlamear assim os pés?
Um sorriso mais pálido que o da alva tremia nos lábios esbranquiçados da donzela.
- Vim trazer para você um presente. Uma flor, aqui está. Uma flor que muda de cor, em todas as estações.
- E que devo fazer eu, um guerreiro com uma flor?
- Observa como é linda. É uma flor que não murcha nunca. E foi regada com o meu sangue. Toma-a.
O homem repeliu a mão arroxeada, que Pilti lhe dava a flor violácea.
- Vai descansar, menina. Está bem com febre. Trate de dormir. Depois é que vai cuidar dos afazeres da casa.
- Por que não aceitas o meu mimo? - lamentou a infeliz. - Para eu encontrá-la, cheguei a correr perigo de morte, arrisquei a minha própria vida.
- Pois você é uma tola. Essa sua ação chega a me causar desgosto. Vai dormir, comer e, depois, vai pôr a casa em ordem.
Pilti recomeçou silenciosamente a sua existência de canseiras. Procurou não pensar mais no presente e no seu sonho louco.
Mas, um dia, Piti estava sentada na frente da casa, repousando das canseiras do dia. Quando ela avistou, passava um homem calvo. Um homem de olhos amarelos e velhacos. A tarde estava quente e corria uma brisa mansa.
- Alô, menina bonita. Você quer esta espada? É muito linda, é de aço inquebrantável. Eu deveria levá-la ao mago Barbalã, mas pesa muito. Já estou cansado. E, por isso, resolvi entrega-la à primeira pessoa que encontrasse.
Pilti, que estava meio adormecida, quebrantada pelo calor e acalentada pela brisa, apanhou a espada, sem prestar muita atenção no que estava aceitando. Viu que o homem calvo se afastava e entrou no bosque. Piti tornou a pegar no sono.
Meia hora depois, quando abriu os olhos, lembrou-se do estranho presente do desconhecido. Estava ali a seu lado a temível lâmina.
- Que posso fazer com isso? - disse ela para consigo. - Ao menos, fosse uma faquinha para descascar batatas. Nem ao menos consigo erguê-la do chão.
Nesse momento, Rutor chegava da caça. Com o seu olhar experimentado, viu logo o valor da arma. E ficou deslumbrado. Quis saber como surgira ali aquilo.
- É minha. Me foi dada por um desconhecido, que se foi embora. Aceitei-a. Nem sei por que eu aceitei esta arma.
- Você pode me dar essa arma?
- Posso, meu senhor. Há muito que eu sonhava dar a você um presente que fosse do seu agrado.
- Piti, você é uma excelente moça. Você sabia que eu estimo muito você? Olha, eu vou lhe recompensar: vou comprar, ainda hoje, um bracelete de bronze, uma pulseira de prata, um colar de pérolas com fio de ouro.
- Mas eu não mereço nada. Eu não tenho nenhum mérito. - disse-lhe muito vermelha a jovem criada. - Não fiz o menor sacrifício, nem ao menos sei o valor dessa espada.
- Não importa, não importa.
Dali em diante, Pilti descobriu que os homens, nos quais a matéria pesa mais do que o espírito refulge, dão pouco valor aos mimos de amor. E muito aos presentes que representem para eles um proveito a tirar.