Contam que, antigamente, aqui mesmo na Jaguareté Cachoeira, os veados vieram e começaram a comer a roça de toda gente. Ninguém via rastro de animal nenhum. Só encontravam as manivas quebradas. Aqui, ali, além, era tudo assim. Manivas quebradas, e ninguém sabia o que estava estragando as roças.
Assim, as roças estavam quase liquidadas. Então, um homem resolveu ficar de vigia na roça. E levou a sua zarabatana, para flechar o que aparecesse.
Foi, subiu para cima de uma árvore, e ali ficou. Tarde já, quando o sol ia desaparecendo, ele viu aparecer um veado na beira da roça. Ali mesmo, diante de seus olhos, o veado se transformou numa velha. Ela pegou um uaturá (cesto comprido, fechado de quatro pés, que traz pendurado às costas) e começou a tirar as folhas da maniva. O homem quieto ouvi-a dizer:
- Andam dizendo que há um enredo muito feio contra mim… Todos me querem matar, por causa da minha maniva. Eu deixarei que eles bulam comigo, mas então esconderei a minha planta no mesmo instante, para que eles não comam mais as suas raízes.
Em seguida, a velha desapareceu no meio do mato. O homem ouvira tudo e vira tudo, sem dizer nada. Desceu da árvore e foi para casa. E não disse nada a ninguém do que vira e ouvira.
Outros donos da roça, porém, tinham também ido vigiar as suas roças. E a eles apareceu, igualmente, um veado, que se transformou num velho.
Todos os que viram esses veados, que viravam gente, não contaram nada em casa. No entanto, a roça deles ia se acabando. Mas, até que um dia, chegaram a essa terra, vindos de baixo, dois moços, aos quais eles contaram o que estava acontecendo com as suas roças. Os moços disseram:
- Amanhã vamos vigiar essas roças. Eu ficarei num lugar, e o meu companheiro ficará mais adiante.
Assim fizeram pela tarde, indo ambos para as roças, para ficarem de vigia. Ao anoitecer, apareceu a corça. E um dos moços, sem esperar nada, flechou-a logo, com sua curabi, matando-a imediatamente. Quase ao mesmo tempo, o veado apareceu perto do outro moço. E ele fez o mesmo, matando-o em seguida. Mas ficaram ali ainda, para verem se havia outros animais, que viessem comer a roça.
Passaram de vigia a noite toda. A manhã chegou, e nada mais aconteceu. Então, apanharam a embiara e levaram-na para casa e disseram:
- Aí está quem andava comendo a roça de vocês. Agora é bom que vocês os comam com maniçoba (panelada de folhas de mandioca trituradas, de mistura com carne, mocotó ou peixe).
Assim, fizeram os donos da roça. Mas, como carne fresca é sem gosto, eles moquearam primeiro os veados, para depois comê-los com maniçoba. E fizeram o moquém mesmo dentro de uma casa. E, ali, deixaram durante a noite, para irem buscar na manhã seguinte.
Quando foram, porém, buscar a carne moqueada, para porem na maniçoba, o que viram, no moquém, foi gente de dentes arreganhados, como que rindo para eles. Só havia gente no moquém. Imediatamente, eles pegaram toda a moqueada e atiraram-na ao rio. O que desejavam agora era esquecer-se desse agouro. E não o podiam fazer, porque era forte o cheiro de carne de gente.
Tiveram, portanto, que fazer outra casa. E na casa, então, já não tinha piche de gente. Duas luas depois apareceram no papuri. Pessoas que andavam à procura do seu avô e da sua avó, que tinham sumido da aldeia, foi então que souberam que aqueles dois veados eram gente. É por isso que, desde então, ninguém mais moqueia veados dentro de casa.