Noite de véspera de Natal de 1998. Como ele morava sozinho, decidiu sair de casa para se afastar da solidão. No caminho, enquanto dirigia o carro, optou pela pizzaria no bairro Lagoa Seca. Ao se aproximar, observou haver muita gente. Apesar da dúvida se estacionaria o veículo ali, acabou entrando. De repente, ouviu o grito de alguém a lhe chamar: "Linhares".
Ao voltar o rosto para a direita, próximo ao palco, avistou Almir, colega de profissão. Sozinho à mesa, ele bebia cerveja, tirando gosto com batata-frita e carne assada. Assim, diante de sua insistência para lhe fazer companhia, percebeu a animação dele a lhe denunciar o estado alcoólico. Além disso, debaixo da sua mesa, havia a fila de doze garrafas de cervejas vazias e, em cima, a décima-terceira pelo meio.
Almir, professor de Matemática no Ensino Médio público estadual, mostrava dois lados onde estivesse. Na escola, ora era brincalhão na sala dos professores e nas salas de aula, ora exagerado nas críticas e grosserias, sobretudo durante reuniões pedagógicas da escola. Sua constante revolta consistia tanto por causa da pouca vontade dos alunos para estudarem como pelo mau desempenho dos professores, coordenadores, diretores, como dos “de lá de cima” (era como ele gostava de se referir aos que conduziam a Educação do País, do Estado e até do Município). Para Almir, ocorria manipulação “para mais” nas estatísticas escolares. Baseava-se ele, em sua experiência de anos de magistério, que a maracutaia dos técnicos em educação favorecia a fins eleitoreiros dos que detinham os poderes políticos, ou para que os “grandes do poder” recebessem mais dinheiro, vindo de “lá de fora”. Gostava de se usar da divagação: “Toda a dinheirama derramada na Educação só servia para os políticos gastarem em campanhas e, sem sombra de dúvida, com desvios enormes de verbas oficiais, enchendo os bolsos dos mesmos governantes de sempre”. E era constante mostrar isso em suas conclusões. Por isso, procurei tomar um rumo em nossa conversa. Só que Almir, engolindo o copo de cerveja de uma vez, não trocou de assunto: "Tá vendo, Linhares, como eu tou certo quando eu falo lá na escola? A quantidade absurda de alunos das escolas e das universidades que passam de ano sem ter aprendido nada é enorme, é ou não é? E isso já vem de longe. O que é que eu, você e os outros professores, a gente pode fazer? Nada, a não ser empurrar pra frente um bocado de jumento. Recuperação, Linhares, é só pura enrolação. Claro, claro, os que estão na administração das escolas e das universidades ignoram os que não conseguem, ou os que não querem aprender".
Ao vê-lo Almir Rodrigues a se alterar com a situação educacional negativa por todo o Brasil, professor Linhares buscou afastá-lo rápido da conversa. Pediu-lhe prestar atenção ao cantor do conjunto musical diante deles no palco. Mas não atingiu seu intento porque ele estourou: "Aquele cantorzinho ali e um jumento é a mesma coisa, Linhares". E apontando para um casal de dançarino, em que o homem cantava ao ouvido da parceira, protestou: "Dá uma olhada naquele jegue bêbado. Tá batendo os beiços no ouvido da jumenta. E a idiota pensa que o imbecil sabe o que tá cantando".
Para mais atiçá-lo, Linhares brincou para o colega que melhor seria se o cantor cantasse um forró. Logo Almir explodiu: "Que foi que você me disse? Enlouqueceu, cara? Deus me livre de ouvir a subcultura musical nordestina, com o falso apelido de forró, assim como a sertaneja universitária e a porcaria da baianada. Linhares, nós tamo lascado de cultura de porcos".
Ao vê-lo exasperado, Linhares ajeitou a
conversa. Anunciou-lhe que só estava ali de passagem, pois se dirigia a um casamento, num bifê no bairro Limoeiro. Mas Almir tentou prendê-lo pouco mais. Com esforço, porém, conseguiu se desvencilhar do colega. Ainda o abraçou e partiu rápido.
Entretanto, quando Linhares pensava de ter se desvencilhado do professor Almir Rodrigues, usando-se da história de festa de casamento só para enganá-lo, parou seu carro na aprazível pizzaria da Violeta, italiana de Bari, a qual ficava próxima de Barbalha. Violeta era a sua amiga de solidão, e ele se sentia em casa. Entretanto, ao entrar, deu de cara com doutor Renato Trajano, cardiologista. E diferente do que Linhares imaginava de poder beber e comer em paz, em noite festiva cristã, ocorreu o contrário.
Logo que doutor Renato viu o professor Linhares entrar no tranquilo restaurante, já bamboleando de
embriaguez, veio em sua direção. De pronto, confessou-lhe estar muito puto
(palavra dele) com seus dois filhos, estudantes do segundo ano do Ensino Médio,
os quais ficaram para recuperação, numa escola particular de Juazeiro do Norte.
Segundo o médico, tanto ele como a esposa procuravam dar estímulos aos dois
filhos, para eles não ficarem para trás.
- Eu tenho medo, professor Linhares,
levantou a voz o médico, sem soltar-lhe o braço, sem deixá-lo sentar. - Eu
tenho o maior medo de que meus filhos sejam uns derrotados. Faço de tudo por
eles. Sempre ensino, para eles dois, que eles devem estudar sério, sem perder
tempo, para disputar a pau com os outros e passar na frente de todos os
outros. Tem mais, eu quero que eles dois façam, de qualquer jeito, a faculdade
de Medicina. Gasto o que for preciso pra ter dois filho médico, como eu.
Ao vê-lo dar pausa na lamentação, Linhares perguntou ao médico em que disciplina, ou disciplinas, os dois filhos ficaram para recuperação. Ele, no mesmo instante, jogou para fora de si o mau cheiro do álcool e as palavras irônicas: "Você não adivinha, professor, foi logo em Português. Que porra é esse maldito Português. Os dois sabe bem inglês, não sente dificuldade. Agora lhe digo: a nossa língua é uma língua das mais difícil do mundo. Num tou cheinho de razão?".
Ainda bem, ainda bem, que o cardiologista
não quis ouvir a consideração do professor de Língua Portuguesa sobre a secular idiotice nacional: achar o Português a língua mais difícil do mundo. Saiu doutor Renato Trajano desconcertado
por entre mesas do restaurante até encontrar sua mesa, onde a esposa e dois filhos o esperavam. Linhares avistou o doutor derramar mais uísque no copo,
quase derrubando a garrafa após se servir.
Durante cerca de três horas em que Linhares permaneceu no agradável restaurante de Violeta, não foi incomodado pelo cardiologista, nem por algum cliente. Sentou-se a uma mesa escolhida pela dona do restaurante, afastado de todos. Finalmente, ele se deliciou com dois tintos secos e tira-gosto de queijo com azeite, orégano e azeitonas verdes, além da pizza grande, e acompanhado de canções italianas. Felice Natale! Feliz Natal!
JN. Dantas de Sousa, Eurides.