Nem aprende, nem entende (Dantas de Sousa) - conto

Na casa do sítio, temos o costume de receber visitas do arredor. São pessoas simples de palavras, costumes. Um deles é Vicente Pedrosa. Quando ele aparece, logo procuro lhe oferecer café, para prendê-lo na conversa. Deixo-o falar, e prefiro ficar calado. Vicente Pedrosa não nasceu na rua, mas no sítio Pau Seco, a um quilômetro de mim. O primeiro contato com ele se deu quando eu andava a pé, fazendo caminhada em tarde de verão de novembro. Durante meu habitual percurso, ele me falou como as pessoas de caneta tratam os outros: “Doutor Paulino, o povo de hoje, de  estudo, não  tem a mesma educação dos de antigamente”. E foi  logo me dando o exemplo: se ele me acompanhava, e eu era mais idoso que ele, o certo era caminhar na direita, do mesmo jeito que acompanha uma mulher.

Antes de Vicente usar-se da palavra, perguntei-lhe se o que ele falara não já estava ultrapassado? E logo veio a sua resposta: "Doutor a gente tem que ser pessoa direita e não cheia do direito".  E explicou-me ter aprendido com seus pais que ao andar na calçada, idoso e senhora ficam do lado direito, próximo à parede. 

Vicente Pedrosa ainda me contou mais dois casos. Ele chegou a livrar seu pai de um acidente, quando o empurrou de vez contra a parede. Se o pai tivesse vindo do outro lado, o carro poderia tê-lo atropelado, já que o ancião não tinha mais o mesmo reflexo de pessoa nova. E o outro caso se deu quando a tia de Vicente quase se esbagaçava no chão, se não fosse o filho dela, adolescente, amparando-a. Tudo por causa da casca de banana estendida na calçada. Terminou de contar o segundo caso, no meu portão de entrada. Despedimo-nos.  

Dois dias após o nosso casual encontro, Vicente Pedrosa veio até minha casa. Chegou satisfeito, por eu o haver convidado a frequentar meu sítio. Nesse dia, passamos a tarde inteira a conversar e a beber café, que eu mesmo o coava. Foi muito boa a sua visita. Mais uma vez Vicente Pedrosa se dedicou àquele assunto da caminhada. Explicou-me que, quando se vai cruzar uma rua, sempre deverá se fazer pela distância mais curta e nunca em diagonal. Como também, se há faixa de pedestres, deverá atravessar a rua por cima dela, e mais, todos devem prestar atenção aos semáforos. Completou-me o ensinamento ao me dizer que poucas pessoas atravessam a rua sobre a faixa, e que ainda há motoristas que não param os carros para as pessoas atravessarem a rua. Contou-me um caso de grande desrespeito ao transeunte: assistiu ele, na Rua São Francisco, esquina da Rua do Cruzeiro, a uma moçoila, de tatuagem pelo corpo, dar o braço para a idosa se apoiar nela. Ao chegar perto da outra calçada, a louca empurrou a velha que, por milagre de Deus, a idosa não se estendeu no  asfalto da rua. Pior a gaiatice do povo ao verem a coitada de quatro, parecendo menino novo querendo andar. Um grosseiro meteu foi o dedo na buzina da camioneta dele, como se tivesse metendo no rabo dele o dedo para coçar hemorroidas”. 

Fui forçado a rir com as hemorroidas do motorista mal-educado. Mas para provocar Vicente Pedrosa, revelei-lhe que o tempo havia mudado. Pais não têm mais tempo para ensinar modos de civilidade aos filhos. As escolas, muito pior. O melhor seria a gente ter paciência com a grosseria das pessoas. Mas para que eu lhe falei isso. Vicente se agoniou, levantou-se da cadeira, coçou a cabeça. Em seguida, revirou os olhos para cima, como se estivesse pensando no que iria falar. Antes de voltar a se sentar na cadeira de balanço, Vicente Pedrosa puxou outra situação da falta de civilidade das pessoas. Dentro do ônibus, há diversas faltas de educação. Passageiros de fora não deixam passageiros de dentro saírem primeiro do ônibus. Velhos e crianças são os que mais sofrem. Nas calçadas, velhos são atropelados por jovens e até por adultos. E terminou a sua fala: "Hoje em dia, doutor Paulino, me diga quem dá seu lugar pra uma pessoa velha se assentar?”.

Quando pensei em lhe falar algo, Vicente Pedrosa já entrou em outro fato. Dentro do ônibus, em Fortaleza, ao ir com sua filha ao cardiologista, duas jovens pegaram briga com o casal de velhos, só porque eles reivindicaram às duas o direito de se sentarem. Mas quando o casal foi pedir ajuda ao motorista, o próprio motorista mandou o casal de idosos descer, ou ir em pé. Para ser mais grosseiro, o cobrador ajudou o motorista, ao ironizar o casal de velhos: “Vocês não pagam e ainda quer do bom e do melhor”.

Chamei a atenção de Vicente Pedrosa de que havia leis para ampararem os idosos. Mas isso lhe causou revolta. Ele pulou da cadeira e, agarrado à coluna, como para não cair de tanto nervoso, protestou com o dedo indicador estendido para mim: “Doutor Paulino, não me faça de besta. Mas as leis do nosso País são feitas como folha de papel higiênico: têm vida curta, depois dela sair do rolo”.

Devido a essa sua tirada, tive mesmo que apoiar Vicente Pedrosa. Empolguei-me ao lhe adiantar que os seres humanos obedecem a princípios, a leis, a cassetetes. E continuei minhas palavras: onde há gente civilizada a força policial é menos forte. Liberdade e autoridade devem estar sempre ligadas uma a outra e não opostas. A História registra casos da liberdade que virou devassidão.

- Doutor Paulino, me dê um instantinho. - e Vicente Pedrosa em pé, a se preparar para sair, replicou-me: - Acabou-se o tempo do aprender e o do apanhar. Nem apanha, nem aprende. Nem aprende, nem entende. 

Deu continuidade ao seu sermão para mim. Hoje se joga lixo na rua. Pouca calçada para se trafegar. Parede com pinturas de doido.  Banco de praças quebrados. Estátuas derrubadas. Fios roubados. Vizinhos a botar som em toda altura...  Se ele fizesse uma lista das coisas erradas que o povo de esquerda faz, iria até de manhãzinha, e não dava fim. No nosso País, portanto, nem aprende, nem entende

No final dessa explanação, terminou assim nossa conversa. Vicente Pedrosa me deixou  no silêncio da noite entre reflexões, deitado na rede, no alpendre. E veio-me o pensamento de que quanto mais o ser humano é proibido de fazer uma coisa tanto mais tem vontade de fazê-la. Do jeito que os dias estão passando o nosso Brasil  deixa de ser país educado, democrático, soberano. Mas a quem devo dizer isso? O nome Vicente Pedrosa surgiu. Ah, Vicente Pedrosa, o êxito do Brasil vai depender da educação do povo.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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