Noite quente (Dantas de Sousa) - conto

- Hoje, faz justamente quinze anos, nove meses e dez dias, Dorgival Mendonça, que presenciei uma insanidade humana. Eu não chego a lhe afirmar de ter sido fatalidade. Aliás, não creio existir fatalidade. Confesso-lhe neste instante: desde o dia 14 de novembro de 1979, procurei guardar o segredo. Mas agora, amigo professor, quando nós dois saímos do enterro de Augusto Siebra e como eu já estou vendo a morte a se aproximar de mim, resolvo então confiar a você o que ocorrera naquela noite. Foi uma noite quente, Dorgival.

Após o término da surpreendente confissão de Zé Vieira da Silva, aos oitenta e sete anos de idade, aposentado como funcionário público federal, Dorgival se animou. E logo ao ser convidado pelo aposentado a beber café em sua residência, aceitou-o de pronto. 

    Já sentado na cadeira de balanço, no escritório de Zé Vieira (chamava-se de escritório o quarto da frente da casa. Nele havia a mesa, o armário de ferro, a estante com alguns livros e revistas, duas cadeiras de balanço e a mesinha entre as duas cadeiras) o professor universitário ansiava receber o segredo. Mas antes saboreou com Zé Vieira o café da garrafa térmica, preparado pela dona da casa. 

        Após a dona da casa deixar o ambiente,  Zé Vieira, com palavras lentas, antecipou o segredo ao amigo: na época do fato trágico, ele sofria de insônia, agravada pela não chegada de sua aposentadoria dos Correios. Dois anos atrás, dera entrada nos papéis, e nada de receber aprovação. Por isso, naquela noite de 14 de novembro de 1979, Zé Vieira sentia-se angustiado dentro de casa. O ar que saía do ventilador espalhava-se quentura mais que na noite anterior. O filme policial a que assistia mostrou-se cansativo. E Zé Vieira não conseguia se concentrar no filme. Desligou o televisor, o ventilador. Deixou-se ouvir as batidas do relógio da sala de jantar. Dez horas, contou-as. Lembrou-se de que sua mulher e a filha dormiam nos dois quartos da casa, entre os ruídos dos ventiladores. Para sair daquele tédio amargoso, Zé Vieira resolveu sentar-se na cadeira de balanço, em sua calçada, até que o sono chegasse. 

    Devagar, ele abriu a porta da rua, para não acordar mulher e filha. Mas logo sentiu aragem morna, a se arrastar pelo asfalto da Avenida Padre Cícero, sem ao menos levantar folhas. Antes de se sentar, Zé Viera avistou a pequena igreja fechada, a praça em frente a ela sem ninguém e com lâmpadas apagadas. Na bodega diante da praça, encontrava-se Augusto Siebra, o proprietário, sentado no tamborete. Encostado à castanhola da calçada, achava-se a falar o guarda-noturno. Segundo Zé Vieira, era Abdias estúpido nas conversas. Diziam, pela redondeza, que Abdias, quando afirmava que alguma coisa era verde, ninguém dissesse que era azul. Gostava da teimosia. Se o deixasse, ele se estenderia na teima. O certo é que o guarda foi se chegando aos poucos no trecho, entrosou-se com a vizinhança. Só que ninguém se prestou a saber do antes de ele aparecer no Crato. 

    Nesse momento, Dorgival cortou a fala de Zé Vieira. Guardara uma conversa com o guarda-noturno: numa certa noite, chegou Abdias à sua residência, anunciando-lhe  que, a partir daquela noite, ele era o vigia noturno. Seu trecho eram três quarteirões da Avenida Padre Cícero, começando na linha do trem e subindo até o posto de gasolina. Ainda vigiava as casas por trás da Avenida. Cobrava casa por casa, todos os começos de mês. Mas alguns não queriam lhe pagar.

Esse seu comentário não lhe interessou a Zé Vieira. Derreando-se na cadeira de balanço, continuou a confissão: havia avistado também na calçada da bodega um rapaz magro, vendedor numa funerária, próxima ao calçadão do centro comercial do Crato. Era chamado de Deoclécio. Sabia que o rapaz morava com a mãe viúva, numa casinha por trás da rua da bodega. Comentavam que ele era solteiro, não gostava de rua nem de farra. Andava sempre com a Bíblia debaixo do braço, já que era protestante. Além do mais, ele possuía um jeito de gestos finos. Boatavam as más línguas que Deoclécio queimava o boga. Só que nenhum dos que lhe imputavam o vício sexual havia confirmado ter se usado dele. E o que mais causou surpresa a Zé Vieira é que nunca vira o Dioclécio a prosear na bodega. 

Assim, ao terminar de divisar o trio na calçada da bodega, mais que depressa Zé Vieira retornou a cadeira para dentro de casa. Fechou a porta devagar, para não cantar as dobradiças. Acendeu o cigarro e, calmamente, seguiu para a calçada da bodega de Augusto Siebra.  Ao se encostar à parede da bodega, ficou a ouvir Abdias relatando o crime da Rua... perto do Seminário São José. Cada vez que o guarda-noturno levantava os braços, dava-se para perceber o revólver metido no cós da calça cáqui. O guarda girava o cassetete na mão direita, enquanto se estendia na conversa. Empolgava-se tanto que dava cacetada na castanhola, como a querer fazer justiça ele mesmo.

          - Fui o primeiro, Seu Augusto, a sentir o fedor. - dizia Abdias em voz alta, no silêncio da noite. - Eu vinha pra cá, pra minha ronda.  O podridão fugia por debaixo da porta e da janela da frente. Corri dar parte à polícia.

- Deviam era pinicar quem praticou aquilo. - esbravejou o bodegueiro, coiceando a perna do tamborete. - Que raça do inferno!               

- Qué isso, Seu Augusto. O que senhor findou de dizer está errado. -  retrucou-lhe Deoclécio, descorando-se da parede. - Ela matou o amante, e vai ter de pagar pela loucura. Ninguém tem direito de se vingar.

- Eu sei, meu rapaz, apelou o bodegueiro. - Mas você viu a nojenteza? Ela tirou a vida do açougueiro e retalhou ele. Botou pedaços dele numa bacia. 

- E o pior, Seu Augusto, arremessou-se Abdias na conversa e na castanhola, com o cassetete. - A filha de satanás teve ajuda de sua  filha, de menor.

Naquele instante de princípio de discussão, tiveram os dois de se calar devido ao sinal disfarçado do bodegueiro. Aproximava-se lento, de cabeça baixa, o irmão da vítima, morador de logo ao dobrar a linha do trem. Chegou à bodega, pediu cigarro. Em silêncio, abrindo o maço, retirou o cigarro, acendendo-o com o isqueiro. Pagou-o a Augusto Siebra. Sem haver troco, guardou a carteira de dinheiro no bolso traseiro da calça e, ainda se mantendo calado, saiu de cabeça baixa, se sumindo na esquina.

- Esse daí, recomeçou Abdias, parece ser mais de juízo. Mas o finado, que Deus tape as ouças, foi se amancebar com uma fraca do juízo.

Voltando a sentar-se no seu tamborete de couro, Augusto Siebra acendeu o cigarro, levantou as pernas da calça e alertou: “Vocês não sabem. Espero que não saia daqui. Mato tem olho, parede tem ouvido. Mas a louca era de rabo colado com Zeca-açougueiro, chefe dos açougueiros do mercado, perto da Prefeitura. Aquele nunca foi flor de se cheirar”.

- Pronto, Seu Augusto. - descorou-se rápido da castanhola o guarda-noturno. - O povo não inventa nada não. Sabia que tinha gentona no meio. Pois devem pagar tim-tim por tim-tim.

- Peraí, Abdias, discordou Deoclécio do guarda-noturno, com a Bíblia levantada para o rosto dele. - Já se passou o tempo de olho por olho, dente por dente. Mais violência, de jeito nenhum passar pela cabeça dum cristão.

- Que nada, meninão. - atiçou o bodegueiro a discussão. - Não venha com negócio da lei de crente. Tem de ser na lei de chico-de-brito: bateu, levou.

Abdias gostou da intervenção propícia do comerciante. Havia o bodegueiro tocado num ponto em que, para Abdias, andava engasgado na sua goela. Sua mulher caíra na lábia dum pastor. A ingênua pegava pedaço do apurado da roupa de lavar e entregava ao dono da igreja. Assim, cheio de revolta, Abdias achou a hora de calar de vez um protestante. Mudou a conversa para a vida perigosa de vigia da rua. Deparava-se com bandido e maconheiro. Não sabia que fazer com tanto ladrão. Nem Deus dava mais jeito. Para ele, o Cariri se empestava de má gente. E concluiu: “É por isso, Seu Augusto Siebra, que sou do lado da pena de morte”.

- Vire essa tua boca pra lá, Abdias. - discordou o bodegueiro, abaixando as pernas da calça. - Não mexa nas coisas de Deus. Só ele tira a vida do ser humano.

Ao notar o bodegueiro se pendendo para o protestante, Abdias se calou, encostando-se de volta à castanhola. Nos olhinhos de gato, clareou nervosismo de desagradar o dono da bodega sortida. Afinal, Augusto Siebra foi o único que chegara a tempo na doença da esposa. Não podia desgostá-lo. Desconfiado, baixou os olhos e o cassetete. Com astúcia, buscando humildade, retirou do bolso da camisa surrada do tiro-de-guerra o cigarro. Ao acender, ficou espiando, por entre a chama do fósforo, Deoclécio a se estirar com falsa sabedoria da lei do cão. Não aguentando, porém, as besteiradas do protestante, resolveu tomar-lhe a fala, depois da terceira baforada: “A lei da nossa igreja, criada por Nosso Senhor, Seu Augusto, é a que é a certa. Negócio de pular praqui, pracolá, é coisa de satanás. Mas espie só, Seu Augusto, nenhum cidadão, por mais que seja pé de padre, tem estômago de ver sua casa rebolida, sua esposa e a filinha dele mexida na frente dele, como vi na televisão".

- Deus me livre, Abdias. - aperreou-se o bodegueiro, de olho para dentro da bodega. E protestou: - Se um desse herege bulir com os lá de casa, eu pinicava ele nem que depois me empurrasse pra trás das grades.

- Mas um crime, Seu Augusto, não justifica tirar a vida de ninguém. - discordou Deoclécio, empunhando a Bíblia para o grupo. - Certo mesmo é prisão perpétua.

- Prisão perpétua? - arregalou os olhos Abdias. - Vôte? No bem-bom da cadeia? Deixe de eguagem, filho de satanás. 

Ao ouvir o disparate do guarda-noturno, Deoclécio lhe pediu-lhe mais respeito, mais educação. Era ele um homem de verdade.

- De verdade? Olha quem fala, Seu Augusto? Logo ele com jeitão de baitola. - e acabou sua arenga, desencostando-se da castanhola, com o cassetete apontado para o rosto de Dioclécio. Raivoso, tomou a Bíblia dele, jogando-a no asfalto. Além disso, de cassetete ainda estirado para o rosto do seu desafeto, arrematou: ”Me respeite, crente do inferno. Tu quer me ensinar?". 

Nem adiantou Augusto Siebra, nem Zé Vieira, pedirem calma. De repente, Deoclécio empurrou o Abdias com força, que o guarda, fraco das pernas, se estatelou no asfalto da Avenida Padre Cícero, sujando as calças na poça de lama. O cassetete foi parar por detrás da castanhola. No ímpeto da raiva, Abdias levantou-se agarrado ao revólver e rumou a correr atrás de Deoclécio, que já havia dobrado a rua da linha do trem. Tanto Zé Vieira como Augusto Siebra ficaram parados na calçada da bodega. Somente assistiram ao guarda-noturno a correr torto e fraco das pernas e, em seguida, dobrar a rua da linha do trem. No silêncio da noite, dois tiros ecoaram.

Coitado do Abdias, finalizou Zé Vieira. Depois do bodegueiro, ajudado por Zé Viera, abaixar as duas portas de ferro da bodega, dirigiram-se os dois ao local do ocorrido. Deitado na linha do trem, Abdias gemia e respirava forte. Ao ver o guarda-noturno arfando, um senhor de macacão azul postou-se de joelhos para reanimá-lo E perguntou ao guarda-noturno, por três vezes, quem foi o atirador. Mas Abdias, falando só com os lábios, nas últimas forças, balbuciou algo que somente Augusto Siebra e Zé Vieira entenderam.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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