De quando em quando, minha prima Maria Fortunata Feitosa, solteira e aposentada, telefonava para mim. Ao final da ligação, ela me cobrava uma visita. Aliás, era mania dela telefonar para um amigo ou uma amiga e, antes de desligar o telefone, insistia para saborear as guloseimas da Severina de Jesus, cabocla idosa e solteirona, a qual morava com ela há anos e era tida, por minha prima, parte da herança dos pais. E foi justamente por causa do seu telefonema, segundo ela de extrema urgência, que fui visitá-la.
Estávamos em ano bom de inverno caririense. Sua chácara espaçosa, próxima de Barbalha, apresentava-se úmida e com muitas folhas de mangueira pelo chão. Enquanto degustávamos, na varanda da frente, tapioca de coco com café, além de gostosíssimos sequilhos e pães de queijo, Maria Fortunata me avisou de um sonho esquisito que tivera na noite anterior. Era outra mania de minha prima contar sonho e esperar do visitante a interpretação. Mas somente após o lanche que Maria Fortunata, acomodada de frente para mim na sua cadeira de balanço e arrotando de instante a instante, narrou-me o sonho. Segundo ela, um velho baixinho, acaboclado, de barba e cabelos brancos, comunicava a ela que tentava falar com um amigo ainda vivo, E ela concluiu o sonho: "E sabe quem era o amigo, primo? Você. Ouvi claramente o ancião no sonho dizer seu nome ".
Por pouco não desmaiei na agonia que tive. Apertando os dois braços da cadeira, pensei ser aquilo invenção de Maria Fortunata. E logo procurei saber dela algo sobre o ancião. De imediato, ela me observou de que se acordara assustada. No entanto, após minutos de silêncio, ela me esclareceu: “Antes de eu mandar Severina encomendar missa pra alma do infeliz, achei melhor chamar você aqui. Espero que me diga algo sobre essa alma sofredora, procurando por você”.
Ainda surpreso com a
tal história de Fortunata, veio-me a figura de José Cícero
Pereira, ex-empregado do meu pai, o qual havia morrido há cerca de vinte e três anos. No entanto, para não encompridar conversa, expliquei a Fortunata que esse
negócio de sonhos era tolice e, se ela quisesse, mandasse celebrar missa
para a alma do falecido, a fim de ele não mais importuná-la. Mudei, em
seguida, de assunto. Procurei botá-la em dia com novidades em
Juazeiro do Norte. E, antes de escurecer, despedi-me de Fortunata e Severina. Ainda bem que minha prima se esquecera, na despedida, do tal sonho. Saí de lá, dirigindo meu
carro, debaixo de chuva.
Durante o retorno de volta para casa, ao guiar lento devido ao aguaceiro, o velho Zé Cícero se grudou em meu cérebro. Com nitidez, eu me revi na adolescência, indo ao local ermo da Chapada do Araripe, onde o ancião morava. Eu ia a cavalo, porque lá carro não conseguia chegar. Minha mãe me mandava levar mantimentos para o velho Zé Cícero, de quinze em quinze dias. Eu, realmente, gostava de ir àquele lugar esquisito, onde não havia companhia humana, apenas cricrilar de grilos, chilrear de pássaros, ou coaxar de sapos. Apesar da recusa de Zé Cícero para não querer receber esmolas, eu gostava de andar por lá, a fim de prosear com ele, além de me deliciar de bons momentos na chapada do Araripe.
Uma vez, o ancião chegou a me pedir uma
tesoura, para cortar o cabelo e as unhas. Mas, todas às vezes, ele me pedia um
litro de querosene, para passar no corpo, a fim de repelir os insetos que o
perturbavam durante a noite.
Mas o que eu nunca entendi era quando me
aproximava da sua casa de taipa e barro, de três metros de frente, três de fundo e apenas
uma porta. Sentia-me envolvido por uma aura de misticismo, de crendice, os
quais povoavam meu imaginário. Logo que eu empurrava a porta, avistava, à minha
frente, as duas companhias de Zé Cícero: o quadro de padre Cícero e o de São
Francisco das Chagas, afixados na parede de barro. Depois, deparava-me com o
corpo do eremita do lado direito de quem entrava, já sentado na cama
feita de varas, tendo sobre ela o colchão de palhas, coberto por um pano sujo.
Sobre dois engradados de bebida, havia poucas panelas de barro, algumas latas de leite vazias, que serviam de caneco. Pendurados na parede lateral, trapos de
pano e o facão. E perto da cama havia diversas varas, que serviam para ajudar
o ancião a se locomover.
- Você já de novo com essas coisa, menino? - resmungava
Zé Cícero ao me ver entrar. Após a pausa, completava: - Um dia a morte vem me
buscar, e você só vai encontrar um velho fedorento, de olho grelado.
Ao ouvir a mesma tirada de sempre, brincava com ele, dizendo-lhe que ainda viria muitas vezes, para ouvir seus assuntos. Ao que ele me retrucava, chamando-me a atenção para seus oitenta anos, apesar de ele nunca ter tirado documento. Quando fora empregado de meu pai, na moagem do seu engenho de rapadura, no município de Porteiras, sempre Zé Cícero insistiu para não querer documentos. Mesmo através de ordem judicial, obrigando-o a ter os documentos, para que pudesse receber auxílio do Governo, ainda assim ele se recusou. Não queria nem ouvir falar de aposentadoria. Após o fechamento do engenho, Zé Cícero se afastou para aquele local ermo da Chapada do Araripe. Resolveu se isolar do mundo. Apegou-se àquela vida, sem se preocupar, segundo ele me disse, com dia de semana, nem com ano e tempo passado. Não gostava de tomar banho nem de trocar de roupa. Alimentava-se do que algumas pessoas lhe davam, como a minha mãe que lhe enviava por mim.
Certa vez, quando botei o pé na porta do
casebre, ele se desabafou: “Essa gente vive me paparicando. Quer me matar de
tanta comida da cidade. Deviam cuidar da vida deles, que eu já cuido de mim”.
E quando a cabeça apertava, a zanga aumentava, até eu entrava na peia de língua: “Se você
continuar com a besteira de me bajular, vou subir
de serra acima e nunca mais ninguém vai me achar”. Apesar daquela vida isolada, Zé Cícero procurava, vez por outra, falar-me de coisas íntimas.
Num dia de junho, depois que comentei com ele sobre a festa joanina se aproximando, pela primeira vez eu o escutei comentar seu tempo de mocidade. Revelou-me que andara em festas, chegando a tomar bebida de bodega. Quando lhe perguntei de onde ele era e por onde andava seus familiares, Zé Cícero parou de comer o pão, guardando-o no meio dos panos. Olhou para mim sério, apoiando as costas na parede de barro, e me declarou: "Minha família, menino, é o mundo".
Entretanto, naquele mesmo dia, Zé Cícero me revelou pedacinhos de sua vida. Ao ouvi-lo atento, esqueci-me do tempo. Quando dei por mim, apressei-me para partir. Apesar da insistência do eremita, querendo que eu dormisse por lá, não aceitei. Ainda bem que a noite estava em lua cheia.
Ao chegar a minha casa, havia um deus-nos-acuda. Minha mãe já havia mandado uma turma de gente me procurar por toda parte. Já meu pai, ao me ver tranquilo e saudável, repreendeu-me, avisando a mim que eu não mais iria se dirigir àquele local deserto e perigoso. Só depois dos meus pais se acalmarem, dirigi-me para meu quarto.
Demorei um tempão para dormir, lembrando-me do que Zé Cícero me revelara. Depois da morte dos pais, deixou de trabalhar para meu pai e foi viver na rua. Dos três irmãos, era como se não os tivesse. Mesmo a viver sem eito nem beira, cresceu consciente de que não existia amigo, porém companheiro de estrada. Trabalhou como burro de carga, não estudou nem teve profissão. Apesar dos apertos, nunca roubou nem uma agulha de ninguém.
Nesse mesmo dia de junho, antes de encerrarmos nossa conversa, Zé Cícero me fez o desabafo de cortar coração: “Eu resolvi, menino, seguir minha solidão, que me acompanha desde moço. Me desiludi desse mundo. Por isso nunca quis namoro nem casamento”. Após o acesso de tosse, ele botou força na voz: “Nunca fiz negócio de homem com mulher, nem de homem com homem. E nem sozinho, nem com os de quatro perna. Hoje com a morte se encostando, sou um avirginado, igual a padre Cícero e São Francisco”.
Quinze dias depois da última visita, às escondidas me dirigi à casa de Zé Cícero. Encontrei a porta da casa dele trancada. Chamei várias vezes por ele. Nervoso que fiquei, tive de botar a porta abaixo. Zé Cícero, na mísera cama, fedia muito. Antes de fazer alguma reza pela alma dele, ouvi nitidamente a sua voz rouca quando me via chegando: "Você de novo, menino. Um dia a morte vem me buscar e você só vai encontrar um velho fedorento, de olho grelado”.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.