O peixão do Bié (Dantas de Sousa) - conto

Severino não se desapegava do mau hábito adquirido em São Paulo. A coitada da mãe, tomando conhecimento, se valeu de reza e promessa, mas morreu de desgosto, em Caruaru. Já o pai e os dois irmãos não o aceitaram em casa. Por isso, Severino vivia se escapando pelo mundo. 

Certo dia, Severino reencontrou-se com seu primo José Pacheco. Os dois vinham num ônibus de romeiros para Juazeiro do Norte. Como eram primos e bons amigos na adolescência, o Pachequinho procurou lhe dar atenção. Embora não concordasse com suas atitudes erradas, eles se hospedaram no mesmo quarto do rancho, atrás da igreja do Socorro. 

 Como o contrato do ônibus pelos romeiros era de sete dias em Juazeiro do Norte, na véspera do retorno para Caruaru, em começo de noite, encontravam-se Pachequinho e Severino sentados a conversar na Praça Padre Cícero. De repente, Severino se levantou do banco e se dirigiu ao posto de táxi da praça. Ao chegar lá, quatro taxistas o cercaram e falavam ao mesmo tempo com ele de modo agitado. Em poucos minutos, Severino entrou no corcel I, cinza-metálico, e o motorista o levou não se sabe para onde.

 Quatro meses depois de Pachequinho estar a residir em Juazeiro do Norte, achava-se ele na mesma praça, trabalhando como fotógrafo. Ao se encontrar numa roda de pessoas, escutou o motorista do corcel I, cinza-metálico - de nome Bié - relatar uma corrida que fizera com um passageiro de nome doutor Correia. Pela descrição do passageiro e a data da corrida, logo veio à mente de Pachequinho o primo Severino. E o Bié começou a contar que, naquele começo de noite, levou doutor Correia ao cabaré de Iracema, no bairro Pirajá. 

Na ida, o doutor se apresentou como romeiro. Tinha vindo pagar promessa feita ao padre Cícero, devido ao acidente de carro. Disse-lhe que se considerava homem de fé, sem andar no pé de padre, sem enganar ninguém. Até baixou o rádio para se explicar que, depois da promessa paga, queria se divertir, e tudo pago por ele.

Logo que chegaram diante do cabaré, Bié nem esperou o doutor descer do carro. Penetrou às pressas, na claridade vermelha do corredor, a fim de anunciar à dona do cabaré a chegada do peixão. Assim, Doutor Correia mostrou-se familiar no ambiente. Cumprimentou Iracema, a dona do cabaré, escolheu a mesa perto da janelinha do bar. Na penumbra do local, empolgou-se. Chamou, com bons modos, o garçom. Mandou-o, então, baixar à mesa a garrafa de um bom uísque. Mas terminou aceitando o da casa. Duas mulheres desfilaram à frente dele: torceu-lhes o nariz. De quando em quando, empurrava a bebida goela abaixo, fazendo careta. Assim, captando amargurado o desânimo do freguês, Bié procurou se valer da madame.

Mais que depressa, Iracema correu até a cozinha. Preparou o seu coquetel derruba-macho. Ordenou ao Bastião, o garçom, aumentar o volume da radiola. Na arte de agradar macho, a madame achegou-se manhosamente à mesa do doutor, entregando-lhe o coquetel. Foi tiro e queda. Nem se remexeu direito a bebida na barriga do doutor Correia, e ele já se derretia com as três mulheres. De rompante, abraçou-se com uma delas, puxando-a para o salão. Mostrou ser pé de dança. No entanto, após duas canções, ele perdeu o gosto para a dança. Foi se sentar à mesma mesa, sozinho. E Bié, então, lhe deu força: "Vamos, doutor Correia, Aprecie a  animação".

Após as palavras de Bié, doutor Correia decidiu tomar de conta do cabaré. Dali em diante, só se via Bastião derrubando comida e bebida nas três mesas, ajuntadas em fila. O doutor e as três meninas se esbaldavam numa amizade só. Afoitado, o doutor, mesmo desafinado, buscava acompanhar pedaço das canções da radiola.

Tarde da madrugada. Faltou cerveja. Num instante, doutor Correia deu ordem a Bié e Bastião para não deixarem faltar nada. De camisa aberta, ensopada de suor, rodava no salão, de voz mole. De lá da cadeira de balanço, Iracema sorria entre o vermelho do batom, esperando o abestado se emborcar. Bastião só aguardava a madame levantar o dedo para iniciar o rapa. Cumprindo ordens, as raparigas formaram a roda, colocando o doutor dentro dela. E cantavam e batiam palmas e gritavam: “Faz um quatro, doutor. Faz um quatro, doutor”. 

Encenando um quatro com as pernas cambaleantes, conseguiu doutor Correia penetrar a penumbra do corredor. De voz embolada, saiu a gritar que iria tirar água do joelho. Gargalhadas trinaram pelo salão. O som da radiola se misturou às vozes das raparigas embriagadas e ao som de talheres tinindo em garrafa vazia. Mas enquanto a algazarra acontecia, ninguém do salão percebeu o dia amanhecendo, pela porta do corredor, pelos buracos do telhado. Também nem se deram conta da demorada ausência do doutor. No meio da algazarra, ouviu-se o grito estridente de Iracema: "O que Bastião? Como é a história? Não me venha com conversa mole".

- Eu juro, Iracema. O peixão, quer dizer, doutor Correia, se sumiu.

Levantou-se da cadeira, de olhos esbugalhados, a dona do cabaré. De imediato, agarrou-se ao colarinho do garçom, levando-o à força até o banheiro. De lá, só se ouvia os gritos de Bastião, apanhando de Iracema. O desespero caiu dentro do cabaré. Iracema a se valer dos exus e dos santos. As prostitutas perderam a noção do acontecido. Bié saiu doido, à procura de doutor Correia, pela redondeza. Mas ninguém havia visto um homem de cabeleira preta, pele clara, camisa manga comprida, anel de pedra vermelha. 

Sem mais esperança, ao entrar de volta no cabaré, Iracema agarrou-se ao colarinho de Bié, ameaçando-lhe: "Ou dá de conta do seu peixão, ou vai se explicar na delegacia". E rápido, Iracema, Bastião e as três mulheres, obrigaram Bié dirigir o corcel I até a delegacia. Lá, o taxista teve de apresentar a sua versão. Por fim, o delegado resolveu a questão: Bié pagaria a Iracema uma parte das despesas.  

Só que Bié não sofreu sozinho. Severino sumiu. O proprietário do rancho apertou Pachequinho, e denunciou-o à polícia. Para não se encrencar, o primo concordou a pagar as diárias dele e de Severino na pousada. Ainda, as três refeições diárias dos dois, além de refrigerantes e as tantas doses do primo. Um absurdo de conta. Além do mais: Pachequinho teve de pagar ao motorista do ônibus a passagem de vinda do primo, as despesa de Severino a uma dona de barraca de comida atrás do cemitério do Socorro e a um vendedor de tira-gosto. Assim, Pachequinho alisou. Ainda bem que o dono da pousada o amparou, ao arranjar-lhe um começo de vida nova em Juazeiro do Norte, no trabalho de fotógrafo na praça Padre Cícero. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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