O quadro (Dantas de Sousa) - conto

Depois da transferência de papai para Fortaleza, nosso lar passou por uma grande tribulação. Bem diferente de quando morávamos em Juazeiro do Norte, Lá vivíamos em paz familiar. Aqui na capital, papai caiu no vício do álcool. De início, após o expediente na repartição federal, nas sextas-feiras papai saía com os colegas. Pouco tempo depois, saía às quartas-feiras. Até nos outros dias, papai passou a beber a sós em nossa casa. Ela havia virado um ébrio.    

De tanto reclamar, brigar com ele, mamãe perdeu as forças. Não mais queria ir a lugar algum. Vivia trancada dentro do quarto dela. Quando resolvia deixar rapidamente o seu quarto, no lugar de acalmar eu e Jacinta, ela criava um bate-boca com nós duas. Para ela, havia se sumido os seus vinte e cinco anos de casamento. 

Certo dia, uma senhora, esposa de um colega de repartição de papai, a qual também sofria a embriaguez do seu marido, terminou convencendo a irem a um terreiro. Mamãe foi com ela, demorou quase seis meses de idas para lá, porém mamãe abandonou o terreiro, sem conseguir resolver o seu problema nem o do nosso  lar. Terminou a se valer de um psiquiatra. 

A partir daí, ela começou a se distanciar mais da família: isolou-se no quarto onde dormia sozinha, sem mais haver comunicação com a gente. Até minha irmã mais velha Jacinta, que tentava concluir o curso de Psicologia, achava-se desorientada. Já eu, quase não parava em casa. Havia repetido a primeira série do Ensino Médio e já me encaminhava para ser reprovada na segunda série. Andava com uma turminha da pesada. E não escutava as advertências da minha irmã Jacinta.

Numa manhã de sexta-feira de outubro, quando eu me preparava para ir à escola, a Jacinta, desconfiada por eu não conduzir meu material escolar, porém a sacola de viagem, mais uma vez procurou me aconselhar, enquanto comíamos a primeira refeição do dia, na cozinha. Não me aguentei com os seus conselhos. Levantei-me da mesa e joguei para fora minha revolta: não estava a querer conselho. E, na minha cegueira para eu me encontrar com meus colegas, caminhei para a porta da saída. Mas Jacinta insistiu: "Pois, pelo menos, vamos conversar como duas pessoas adultas". 

- Adultas? - lancei-lhe na cara. - Nem eu nem você ajeita esse inferno. 

Quando eu já estava abrindo a porta para sair, Jacinta resolveu se usar de um atalho. Explicou-me, com mansidão, que somente nós duas deveríamos iniciar o caminho para resolver a situação triste, sem jeito. No impulso da coragem, Jacinta me convidou  para eu me sentar, junto a ela, no sofá da sala

Enfim, sentamo-nos uma perto da outra. Até nos abraçamos no mesmo sofá. Coisa que não fazíamos há um tempão. Permanecemos lá em silêncio. Jacinta, de olhos fechados. Já eu, de olhos abertos, agoniada para ir ao encontro planejado com a turminha. Ao observar minha irmã naquela mesma posição, sem me falar nada, impacientei-me. Agarrando ao braço de Jacinta, indaguei-lhe o que ela queria me dizer de útil. E Jacinta, ao abrir os olhos devagar, avisou a mim: "Lúcia, estou sentindo uma dor forte, no coração".

Na sala silenciosa, Jacinta apertava o próprio coração. Agoniada e pálida, vi minha irmã atormentada com a dor, com dificuldade para falar algo. De repente, eu me assustei. Senti nitidamente que tinha visto algo estranho. E minha única reação foi apontar, com o indicador da mão direita, para o quadro de Jesus. 

Aquele quadro, afixado na parede da sala de visitas, era como se ninguém da nossa casa soubesse da sua existência. Ele se achava pendurado naquele local dia e noite. Aliás, tanto eu como Jacinta, o que nós duas possuíamos de conhecimento sobre aquele quadro, foi de ter papai afixado na parede da sala de visitas da nossa casa em Juazeiro do Norte, um presente dos nossos avós paternos. Chamávamos de a imagem do Coração de Jesus. E ainda me lembrei de que a mãe de papai, antes de morrer, lhe pedira para que papai e mamãe não desprezasse o quadro. Ainda, mesmo com oposição de mamãe, pôs papai o Coração de Jesus na sala da nossa casa, em Fortaleza. Daí que o quadro vivia sozinho na parede da sala, em silêncio tempo todo. 

Mas, naquele dia inesquecível, ele havia falado somente para mim: “Vou dar paz na sua família”.

                                                   ***

- Jesus disse isso pra você mesmo, Lúcia?  

- Eu juro. Eu juro.

É bom esclarecer mais esta história. Estávamos eu e Carla Amaral de Almeida a conversarmos na varanda da minha casa em Juazeiro do Norte. Fazia quatro meses e quinze dia da minha mudança, uma vez que eu estava aposentada e viúva. Comprei esta confortável chácara e passamos a morar eu e Socorro, minha funcionária que preferiu vir comigo da capital cearense. Deixei meus dois filhos, uma filha, quatro netos em Fortaleza. Também deixei Jacinta e marido com seus dois filhos casados. 

Neste meu aniversário de setenta e dois anos, após saírem os convidados, relatei a história do quadro para minha antiga amiga juazeirense. Se ela acreditou ou não na minha história, não me importo. Mas Jesus fez mesmo tudo o que Ele havia dito para mim. Meus pais morreram unidos, cada qual carregando consigo as honras de casal bodas de ouro. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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