Descia, pela Rua São Pedro, a penúltima escola de Juazeiro do Norte, conhecida como Escola Normal, destinada à formação de professoras. Nas calçadas, de um lado e do outro, a multidão, separada por cordas, assistia barulhenta ao desfile do Dia Sete de Setembro. As alunas da famosa escola se vestiam de blusa branca, gravata e saia pouco abaixo dos joelhos, ambas vermelho-tinto. Destacava-se o pelotão das bandeiras. À sua frente, portando a bandeira do Brasil, marchava Ana Regina Melo de Oliveira, aluna do último ano do Ensino Normal. De olhos castanhos, cabelos pretos e lisos, até a cintura, trazia ela delicado sorriso. Na época, diziam ser ela uma das moças mais bonitas da cidade. Mas o seu plano consistia em ser professora da Escola Normal. Nunca passara por sua cabeça a vontade de namorar.
Na esquina da Rua São Pedro com a Rua São Francisco, Ana Regina aguardava a escola da frente acabar de desfilar diante do palanque das autoridades, em frente à Praça Padre Cícero. E foi durante esse breve intervalo que ela, a porta-bandeira do Brasil, ao voltar o rosto para a esquina da direita, onde se localizava a agência do Banco do Brasil, surpreendeu-se com aqueles olhos verdes, e mais para verde-escuros, fitando-a com firmeza. Agarrado à corda, o rapaz parecia querer lhe dizer algo. Sem ela esperar, o mesmo rapaz mandou-lhe, com a mão direita, o beijo.
O atrevido lhe fez tremer o corpo. Ana Regina, antes de recomeçar a marcha, revidou com disfarce de canto de olho o sutil beijo. Mas após o desfile da Escola, por sinal bem aplaudida, ocorreu o primeiro encontro dos dois jovens. Deu-se assim: o rapaz seguiu-a pela calçada, forçando passagem entre o público. Ao final do desfile, na Rua Floro Bartolomeu, reencontraram-se. Rumaram os dois, acompanhados pela prima da moça, até a Praça Padre Cícero. Naquele momento, o destino imprevisível, sutil, unia-se a juazeirense (filha de paraibana com pernambucano) com um alagoano, José Rodrigues de Lira, que morava numa pensão de rapazes e trabalhava numa loja de tecido e roupa da Rua São Pedro, a rua principal do comércio.
- Ó Deus, eis um tempo que não mais
voltará. - balbuciou Ana Regina Melo de Lira a sós, durante a madrugada, sentada na cadeira de balanço da sala de jantar de sua residência. E concluiu
com amargor: - De hoje em diante, minha vida será pequena vela acesa, a
iluminar um passado que durou trinta e sete anos e três meses.
Fechou Ana Regina os olhos. Sem conseguir dormir, desceu mais ao passado. Ainda menina, chamavam-na de Regininha. Por pouco tempo, seus dois irmãos apelidaram-na de Nina. Já na escola primária, chamaram-na de Regina. Na Escola Normal Rural, todos a conheciam por Ana Regina. Após o casamento, recebeu o nome de Ana Regina Melo de Lira. Havia casado com José Rodrigues de Lira. Passaram a lhe chamar de Dona Regina, ou de a esposa de Seu Zuca, Seu Zuca-da-bodega. E após ter começado a sua escola de alfabetização para crianças, no salão ao lado do comércio do marido, alguns forçaram a chamá-la de professora Donana (junção de dona Ana).
- Eu, que mais me importo quem sou. - volveu lentamente os olhos Ana Regina na direção do salão, onde fora a escolinha. De lá, ainda vinha o cheiro de velas.
Ana Regina se encontrava sob efeito de tranquilizantes. Depois que voltara à tarde do enterro do marido, no cemitério do Socorro, havia caído na cadeira de balanço da sala de jantar, sem querer conversa com ninguém. Recusara a companhia de parentes, de amigas do tempo de escola e até de vizinhas. Preferia ficar a sós, para pensar em como haveria de continuar a vida, dali em diante. Não possuía filhos nem quis adotar. Absorveu seu tempo em dar aulas particulares, de reforço. Desde o casamento, não se separava de Quininha, a sua amável empregada. Devido ao nervosismo da empregada, mandou Quininha passar uns dias na casa de sua única filha, no município de Santana do Cariri.
Enquanto viveram casados, Seu Zuca e Ana Regina sempre viveram em paz. A única tristeza da esposa era que o marido se ocupava mais na bodega sortida e com muitos fregueses. Raramente o marido a acompanhava à igreja, para assistirem à missa do domingo. Mas Seu Zuca conservava
duas obrigações religiosas. A primeira, a Renovação do Sagrado Coração de
Jesus, em sua residência, no dia quinze de agosto. Em todos os anos de casados,
o marido, três dias antes da celebração católica em família, mandava pintar a casa inteira. Quininha e Ana Regina preparavam a casa e a comida para os convidados. Dona Baião, a rezadeira,
tirava a Renovação. Em seguida, vinha o café do santo, composto por vários tipos de
bolo, mais sequilho, aluá, refrigerante, café e chás. Já a segunda
obrigação ocorria todos os dias. Depois de fechar a bodega, pontualmente
às dez da noite, Seu Zuca rezava o terço, sentado na espreguiçosa, diante do quadro do Sagrado Coração de Jesus e da mesa dos
santos.
- Coitado, lamentou-se a viúva,
sem ter mais força para chorar. - José nem vai mais rezar seu terço,
nem assistir à nossa Renovação. Mas Nossa Senhora e o Divino Coração de Jesus,
no outro mundo, irão protegê-lo.
Levantou-se da cadeira Ana Regina a fim de passar o café. Avistou, pela brecha da janela, que o dia amanhecia. Assustou-se como o tempo correra. E enquanto coava o café, veio-lhe à mente, o mendigo Tião. Para ela, não desejaria ter se lembrado, naquele momento, do Tião. Mas a imagem do mendigo tomou de conta de sua imaginação.
Via-o direitinho: olhos verdes, mais para castanhos do que para verdes. Lembrou-se de quando José mandava Quininha lhe dar almoço, janta, merenda. Tião grudara-se na bodega do marido. Era como se Seu Zuca e Ana Regina o sustentassem. Até roupa usada lhe davam, Tião só não fazia morar na casa. Todos os dias chegava à bodega para receber a comida, o café e prosear com o marido. Andava com o inseparável saco às costas. Como não se aposentara, era o casal quem o sustentava. Tião pedia esmolas, porém Seu Zuca pagava o aluguel de um quartinho, dentro da vila de casas, ao lado da igreja de São Francisco. Situava-se a três quarteirões da bodega de Seu Zuca. Desde que Tião chegara, pela primeira vez na bodega, vindo de não sabe de onde, acendeu-se nela aversão a ele. Por mais que o marido lhe pedisse para ser benevolente com o mendigo, ela guardava, dentro de si, pensamento esquisito, como se o mendigo lhe tivesse, no passado, deixado uma herança de tristeza.
- Ai, Deus meu, bradou a mulher para o
silêncio, enquanto se levantava da mesa da sala de jantar. - Nossa Senhora, me
dê força para eu caminhar.
Sem ânimo, entrou no quarto e deitou-se na cama de casal. Novamente lhe retornou a lembrança da trágica noite da última quarta-feira, em meio à Hora da Graça (missa semanal e, logo após, a bênção do Santíssimo Sacramento no Santuário de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte, todas às quartas-feiras, às seis horas da tarde). Ouviu-se o zum-zum-zum fora da igreja e no interior do templo. Dois homens foram assassinados por perto. Ao sair da igreja, Ana Regina recebeu, de uma vizinha sua, a notícia, por longe, da tragicidade. Ao chegar próximo à sua residência, avistou Quininha aos gritos, nervosa, sem ninguém acalmá-la. Percebeu, pois, haver ocorrido o que imaginou ser.
Levantou-se apressada da cama Ana Regina. Correu para a bodega. Empurrou a porta e passou a rememorar a cena: entre o balcão e as duas portas de ferro abertas para a rua, o marido, no chão da bodega, como se estivesse dormindo por cima de Tião, também ensanguentado, sem se mexer. Lembrou-se de ter recebido do policial a bolsa dos documentos do marido e o saco. Segundo o policial, poderia o saco ser objeto para esclarecer algo sobre o mendigo.
Ana Regina arrepiou-se ao segurar o saco de pano. Ainda via Tião agarrado ao imundo saco. Para espantar o mal, a viúva se benzeu com três sinais da cruz. Mas, no instante de tamanha aflição e medo, sozinha dentro da bodega, pareceu ouvir Tião a querer lhe revelar uma notícia, ou fazer as pazes com ela.
Correu até a sala de jantar Ana Regina. Sentia o desespero a lhe querer asfixiá-la. Por providência de Deus, batiam-lhe à porta do salão. Era a voz de Quininha a retornar. Abraçou-a como se fosse a única pessoa mais querida do mundo. Começou a lhe contar o que ela havia visto e ouvido, sozinha, dentro da bodega, instantes atrás.
- Dona Ana, alertou-lhe a
empregada, a senhora não jogue fora o saco de Tião.
Ana Regina mudou a conversa. Pediu a Quininha cozinhar algo para comerem. Sentia-se fraca, devido a tranquilizantes e café. E enquanto a empregada se dirigiu à cozinha, veio-lhe à mente abrir o saco de Tião. Lembrou-se que havia deixado debaixo do balcão da bodega. Pegou-o e trouxe para o claro. Quininha abriu as janelas e varria a sala de jantar. E quando ela abriu o saco, deparou-se com o caderno grosso. Arrepiou-se. Mais ainda, quando Quininha lhe informou: "Já pegaram o nojento que tirou a vida do Seu Zuca e de Tião".
Quininha se calou. Voltou aos afazeres da casa. Ana Regina, atônita e amargurada, sentou-se na cadeira de balanço. Tremia-se da cabeça aos pés, agarrada ao caderno engelhado de Tião. Abriu-o. Começou a passar os olhos pelas páginas amareladas. A letra legível, de quem frequentara escola. Apressada, a viúva o lia. E foi descobrindo coincidências: Tião e seu marido eram dois alagoanos. Tião afirmava que só tinha um irmão, assim como seu marido também lhe dissera.
Antes de prosseguir a leitura, Ana Regina quis saber mais o que havia no saco. Encontrou uma identidade. Leu o nome da pessoa, o nome do pai e da mãe. Resolveu buscar a identidade do marido. Finalmente conseguiu comprovar: eram os dois alagoanos, irmãos de pai e mãe. No instante, aflorou-lhe o pensamento de que ninguém deste mundo, nem tampouco Quininha, iria saber sobre Tião, o Sebastião Rodrigues de Lira. Ana Regina queimou o saco e o que havia dentro dele.
JN. Dantas de Sousa.