Mariquinha Filipe Gonçalves, costureira de roupas de mulheres e crianças, mais conhecida em Juazeiro do Norte por Mariquinha, ou Mariquinha-costureira, era mulher sadia, alegre e disposta. Na casa dos seus pais, ela trabalhava sem se importar com a hora. Não lhe faltavam freguesas na sala de visitas. O quarteirão onde morava se acostumou com todo aquele entra e sai de mulheres. Tanto a porta de entrada como as janelas permaneciam abertas durante o dia e só eram fechadas tarde da noite. Na calçada da casa, havia o benjamim sempre verde, de copa arredondada e de caule grosso. Em sua sombra, todos da vizinhança ouviam as conversas que rolavam na espaçosa sala de visitas.
A costureira possuía, em cadernos de anotação, os nomes de todas as freguesas tanto do município de Juazeiro do Norte como de outros locais próximos a esse município. Dedicada à profissão que escolhera desde adolescente, Mariquinha não quis se casar nem ao menos namorar, ou ter tido algum amor abafado. De dia e de noite, a maior parte do tempo sentada à máquina de costura, ela ajudava o pai e a mãe e os dois irmãos em seus estudos. Ajudou até na costura das roupas de casamento deles dois e das suas esposas.
Não havia nela indisposição nem tristezas. Suas risadas diferenciavam-na no meio das outras mulheres. Também se mostrava muito religiosa. A mesa dos santos, voltada para a rua, via-se sobre ela o grande oratório de madeira, envernizado de preto, com janelas de vidro, e esculpido de flores. Dentro dele, havia várias estátuas de santos da Igreja Católica. Ainda, pela parede, acima do oratório, estavam afixados quadros de santos, os quais arrodeavam o Coração de Jesus e o Coração de Maria, pertencentes aos pais de Mariquinha. Os dois quadros dos corações santos estavam constantemente iluminados por uma pequena lâmpada vermelha. Quando chegava o mês de dezembro, que era um dos mais cheios de encomendas de costura, quem é que não ficava boquiaberto com o presépio de Natal da Mariquinha-costureira. Todos os dias 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, ocorria a Renovação do Coração de Jesus e de Maria. Pintavam a casa toda, para a noite da reza. Se ela mandava convites, acho que só eram para os parentes dela, ou para as pessoas que ela considerava. Mas, no dia da reza e, logo após, o café do santo, a casa dos pais se enchia de convidados, de não convidados.
Mas sem querer me alongar em inesquecíveis lembranças, como foi difícil de me acostumar quando tive de ir estudar em Recife, para me preparar para o vestibular. Em minhas saudades, como se destacavam a residência e a pessoa de Mariquinha. E para me consolar, sentia-me feliz de meus pais residirem em frente à casa de Mariquinha.
Até que o tempo se encarregou de, pouco a pouco, me afastar de Mariquinha e daquela minha rua. Meus pais já não mais moravam nela. Aposentados, os dois foram residir na chácara deles, bem perto do município de Barbalha. E eu, após ano e meio de me formar em Medicina em Recife, resolvi, com o apoio de minha mulher recifense, retornar para meu município natal, Juazeiro do Norte, trazendo também conosco um casal de filhos solteiros. Comprei uma casa bem próxima aos meus pais.
Como a rapidez do tempo me assustou. Vinte e sete anos que eu e minha família moramos em Juazeiro do Norte. Meu casal de filhos, agora formados, casados, a trabalharem para formarem os filhos. Há dias me afogo em imaginações e numa tristeza pesada de ser expelida por mim. Devido à pandemia chinesa, denominada de covid-19, deparo-me com angustiantes notícias de morte pelo mundo. Conhecidos e parentes se vão sem volta. E este mundo se transfigurou em mim num mundo desgarrado da alegria de viver o impreciso presente.
Dias atrás, lembrei-me daqueles que moravam em minha rua, como Mariquinha e seus pais. Desde que retornei de Recife, pensei fazer uma visita à Mariquinha e seus pais. No entanto, um amigo de infância, que ainda mora no quarteirão da minha antiga rua, contou-me ter a costureira se mudado com os pais para um bairro de Juazeiro do Norte, chamado de Palmeirinha, para o lado de quem se dirige ao município de Caririaçu, ou seja, do outro lado de onde moro na cidade de Juazeiro do Norte. Depois disso, devido à correria do tempo e do trabalho, perdi totalmente o contato com Mariquinha e o povo da minha rua.
Como somos míopes para avistarmos as sutilezas da vida. Não imaginávamos que pessoas do passado se desligariam de nós para sempre. Pois num é que, em 22 de janeiro de 2021, ao atender a última paciente em meu consultório, ela entrou a conversar comigo. Achei melhor ouvi-la um pouco, já que havia encerrado meu expediente. E ela, sem se importar com a tristeza da pandemia, falou sorrindo sobre uma mulher perto de sua casa, no bairro Palmeirinha, que entrara em pânico.
Essa notícia me deixou curioso. Procurei saber da minha cliente como havia ocorrido o pânico. Antes de ela relatar sua história, antecipou-me que o pânico se deu em Mariquinha, uma solteirona, cheia de vida, alegre e trabalhadora. No instante, assomou em mim, com nitidez, a figura de Mariquinha costureira. Bem depressa, agarrei-me à curiosidade e pedi-lhe para me falar sobre a tal mulher, sobretudo o seu pânico.
Minha cliente abriu o sorriso largo e a boca. Explicou-me que Mariquinha, após a morte dos pais, vivia acompanhada de uma prima solteira e de uma idosa que tomava de conta dos afazeres da casa. Mas ninguém poderia esperar que Mariquinha se assombrasse ao ponto de pegar covid-19. Ela botou isso na cabeça de uma hora para outra, de uma maneira que acabou entrando em pânico. Ela se internou, por vontade própria, no seu quarto de dormir. Abasteceu-se de gel, de álcool, de sabão, de sabonete, de máscara, de comida, de remédios. Ela levou um televisor para dentro do seu quarto, a fim de acompanhar as notícias sensacionalistas do vírus chinês, matador de milhões de pessoas no mundo inteiro.
A porta do quarto de Mariquinha ficava trancada dia e noite. Para se alimentar, a empregada da casa lhe trazia a alimentação até a porta, e Mariquinha abria a porta um pouco. Pela brecha da porta, ela ordenava pôr a comida no seu único prato. Assim também agia com a água de beber, na sua jarra. Também ela havia colocado um fogão pequeno, para poder fazer café ou chá, além do liquidificador. Contudo, as duas mulheres da casa não conseguiram retirar de Mariquinha os seus exageros.
Ao ser reclamada, ela gritava, de dentro do quarto, para as duas, advertindo a elas que se afastassem uma da outra, que não deixassem de usar as máscaras, que se abastecessem de vitamina D3, de vitamina C + zinco, de gel para passar nas mãos de quando em quando, que elas lavassem as mãos com sabão constantemente, que ficassem em casa. E ainda que as duas tivessem cuidado para não se contaminarem com o povo da rua. Além de Mariquinha assistir às reportagens da tevê, mandava as de casa observarem o tanto de gente contaminada, de pessoas que estavam morrendo, e o "ranking" dos países, das cidades brasileiras e estrangeiras.
As duas mulheres da casa ficaram verdadeiramente contrariadas com Mariquinha. Aos poucos, notaram que ela já não mais se comunicava como antes. De dentro do quarto de Mariquinha, passaram a ouvir somente o som mais alto da tevê e o mesmo assunto covid-19. Depois, desconfiaram quando começaram a perceber o aumento do resto das comidas que Mariquinha devolvia a elas duas. Também desconfiaram de Mariquinha não falar alto, mas a voz dela estava quase inaudível. Mas. antes de completar a terceira semana do seu enclausuramento, e temendo a morte de Mariquinha, resolveram então chamar um médico.
Veio à casa de Mariquinha uma equipe de pessoas da saúde. Todos já preparados para o que desse e viesse. Tiveram de abrir a porta à força. Depararam-se com a coitada de Mariquinha deitada na cama, de cabelos desarrumados, pálida, de olhos fundos e arregalados. Batia com os lábios, porém só conseguia murmurar baixinho. Agarrada aos dois travesseiros, ela se tremia. Logo o médico deu ordens para os três enfermeiros e o motorista ajeitassem a mulher para levá-la ao hospital. Rapidamente ajeitaram-na e saíram de porta afora com a Mariquinha. Colocaram a doente na ambulância e partiram. Foi a última vez que as duas mulheres da casa viram Mariquinha frente a frente. Ela morreu no hospital, quatro dias depois de estar entubada.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.