Mestre Gari (Dantas de Sousa) - crônica

Para aprender, basta exercitar o hábito de ouvir. E o instante aparece, como naquele meio-dia, diante de mim, no portão de casa, o gari da minha rua. Magro, da cor de café, bigode caído sobre a boca. Encostou-se sorrindo ao portão da garagem. Eu me encontrava, em momento de angústia, sentado no terraço de casa, na Rua Oswaldo Cruz, em Fortaleza. Aguardava  a empregada me chamar para almoçar.  

De pronto, o gari aceitou o lanche que lhe ofereci. Humilde, preferiu sentar-se no chão, encostado à coluna do terraço. Seu carrinho de coleta de lixo ele o amarrou na vareta de ferro do portão da rua. Já a vassoura e a pá, preferiu deixá-las ao seu lado, na grama.

No primeiro ensaios de conversa, soltou sorridente, por três vezes, a expressão “graças a Deus”. Expressava-se como se vivesse na maior felicidade do mundo. Só que a sua fala me enervou. Deixei-o comer o pão com café. No entanto, refleti se ele proferia “graças a Deus” com segurança. Mas quando insistiu repeti-la por mais duas vezes, explodi. Perguntei-lhe o porquê daquela repetição. 

Inchando de pão o lado direito da boca, respondeu-me: “Questão de fé, meu senhor”. Não me senti bem com a sua resposta concisa. Procurei especulá-lo, de modo incisivo, se ele entendia o que havia falado. Para mim, fé tornava-se uma palavra banalizada no dia a dia. Igual ao seu repetido “graças a Deus”. Parecia que eu desejava, na ocasião, diante do gari, jogar para fora toda a minha tristeza. Machucado por dentro, passando por uma situação constrangedora, eu havia acabado de encontrar aquele ser pobre, ignorante, a se usar de palavras e expressões abstratas, sem talvez entender o significado delas. 

- Só existe uma riqueza pro pobre, meu senhor, tentou o gari me explicar seu ponto de vista, depois de ter se saciado de pão e café. - É a fé em Deus. A gente sem fé é um miserável, mesmo com uma ruma de dinheiro no bolso.

Mostrei-me paciente a ouvi-lo a sua história de fé, ocorrida em seu lar. Em resumo, ele mais sua mulher agoniaram-se no trabalho de parto em sua casa. A esposa passara mal, e a parteira se valeu de Jesus... Ainda bem que a minha empregada veio me avisar que a comida já estava na mesa.

De modo educado, o gari procurou me deixar. Mostrou-se agradecido por eu ter lhe dado dois reais. Entretanto, ao me levantar da cadeira, uma voz a ecoar dentro de mim, levou-me ao impulso de perguntar ao gari o significado de fé. Duvidei da sabedoria dele. Só que o gari, ao pôr a pá e a vassoura dentro do carrinho, respondeu-me incisivo:

- Confiança.

Veio-me a  vontade  de  rasgar  meus  livros da biblioteca. Não o fiz devido a eu ficar preso na cadeira de vime, atordoado, sem entender a razão de eu nunca haver descoberto, com tanta convicção, que fé é o mesmo que confiança. Incrível: não o vi mais, aquele meu Mestre Gari.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

Texto literário de Dantas de Sousa - conto

Texto literário de Dantas de Sousa - crônica

Texto literário de Dantas de Sousa - poema

Literatura do Folclore: Conto

Literatura do Folclore: Ditado e Provérbio

Literatura do Folclore: Qual o cúmulo de...