Na esquina da Rua Santa
Luzia com a Rua São Pedro, deparei-me com Miguel, de barba nos peitos, na agonia
da loucura. Corria de calçada a outra, em meio ao movimento de pessoas e
carros. Ora traçava cruz, apitava com os dedos polegar e indicador, em círculo,
dentro da boca, ora levantava os braços como a organizar o trânsito. E corria e
pulava e se benzia e benzia o povo e sorria e apitava. Motoristas lhe
obedeciam. Curiosos parados riam dele, ou pediam a Miguel sair daquele perigo.
De súbito, Miguel abandonou o meio da rua e postou-se diante de mim, na
calçada. De mão direita estendida, implorou-me apressado:
- Me dê um trocado. Me
dê, me dê.
Antes de eu lhe
entregar a esmola, revelei-lhe, sem pressa, que o conhecia há anos. Até lhe
revelei tê-lo visto trabalhando numa casa comercial da Rua São Pedro. Ele, no
entanto, me cortou a conversa:
- Me dê logo. Me dê, me
dê.
De modo instintivo,
olhando firme para dentro de seus olhos pretos e assustados, exigi que Miguel
me ofertasse sabedoria sua, criada na hora, antes de lhe dar a esmola. Para
surpresa minha, ele espargiu o perfume filosófico dos loucos:
- Antigamente, eu me
preocupava com o mundo. Agora, o mundo é que se preocupa comigo.
De mão estendida, mais
uma vez me suplicou:
- Me dê, me dê
logo. Já não dei meu saber?
Entreguei-lhe a cédula de dois reais e segui caminho. Enquanto eu andava a refletir sobre a frase de Miguel, prometi a mim mesmo extrair mais sabedoria dele.
JN. Dantas de Sousa, Eurides.