Questão de paciência (Dantas de Sousa) - conto

Mal Ernesto Ferreira proferiu o nome - doutor Brandão, e o mais importante cargo dele no departamento da receita estadual em Juazeiro do Norte, Onésimo Gonçalves, comerciante de cereais da Rua São Paulo, arremessou-se da cadeira, com a barriga caindo por cima do cinturão, os cabelos do tórax aparecendo, e empurrou-lhe tapa nas costas. Essa encenação (na verdade, pode-se chamar a isso de impostura) se deu na penúltima noite de festejos em homenagem a São Francisco de Assis, no pátio em frente ao Santuário de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte. Embora o povo do Cariri amargasse o estirão do ano de seca verde e do arrocho fiscal do novo Governo do Ceará, arrotando mudança, quão foi a alegria do comerciante Onésimo Gonçalves dos Santos ao se encontrar com o novo chefe da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará, Francisco Brandão Magalhães. Para os comerciantes da cidade, o novo chefe, transferido há quatro meses, ainda não havia saído da toca.

Ao se desgarrar dos braços de Onésimo, doutor Brandão caiu areado numa cadeira, com vontade de vomitar, por causa do bafo de álcool e cigarro, saído do comerciante. Ainda leso, ficou vendo o comerciante afastando as mulheres para um lado e, ao mesmo tempo, gritando para a esposa se agilizar no refrigerante, a fim da patroa de doutor Brandão molhar a goela: “Avia logo, mulher, avia. Quem está na festa tem de se fartar”. 

Com as pernas lá e cá, calças arregaçadas até os joelhos, Onésimo, já sentado, empurrou o copo de cerveja por debaixo do bigode amarelado de fumo. Na golada, o líquido se sumiu de vez. Permaneceu quieto, aguardando Ernesto Ferreira derramar lamentação para o novo chefe, devido a umas faltazinhas no trabalho. O compadre, coitado, demorava-se num chove-não-molha, corroendo-se em desânimo, e nada se parecia bom pra ele. Só imaginava doença, falta de dinheiro, carestia. O trabalho mais caía como pesado fardo às costas, numa árdua caminhada, pisada em brasas de desilusão. Segurando paciência, Onésimo procurou assistir ao leiloeiro baixinho, careca, trepado na mesa, arrematando o peru. De repente, gritou bem alto: “Cem. Eu boto é cem fechado, e pronto”. E, para encurtar a choradeira do Ernesto, anunciou para o doutor: “Vamos já rasgar aquele bichinho nos dentes, doutor Brandão”.

Nem andou cinco minutos o relógio da torre da igreja, e o leiloeiro deitava, nos braços de Onésimo, o peru. Esquentou-se a festa. Enquanto a esposa desembrulhava o pacote, o comerciante abarrotava os copos de mais cerveja e falava bem alto que o que possuía era pros amigos. Logo ao redor da mesa, dois comerciantes, cheios de gracejo e cerveja, vieram buscar algum pedaço daquele gordo peru. E Onésimo botou moral: “Calma, dá pra tudinho. Mas o primeiro é pro doutor Brandão”. 

Para não deixar a festança esfriar, Onésimo Gonçalves, já roendo o osso da coxa do peru, puxou a cadeira mais para perto de doutor Brandão. Começou a mastigar fatos da própria vida. Era filho de agricultor pobre da Paraíba. Arriou-se mais os pais no Juazeiro do Padre Cícero. Trouxeram só cacarecos num Chevrolet cai-aqui-cai-acolá. O Juazeiro ainda era começozinho de cidade. Pelas ruas, havia romeiro que nem um formigueiro.  E declarou ao chefe da Fazenda: “Aprendi muito com a romeirada, doutor Brandão. Dizem que é gente tola, mas é muito sabido. Digo e assino”. 

Derramou Onésimo Gonçalves pela garganta outro copo de cerveja. Enquanto limpava o bigode na manga comprida da camisa, saiu-se a elogiar doutor Brandão, homem grã-fino da capital, cheio de estudo, parecendo viajado. Tão diferente dele, sem possuir saber de escola, a não ser o do batente do mundo. Para chegar àquela vida de mais facilidade, suou que suou. Conseguiu, com ajuda do céu, instalar seu próprio negociozinho. Fez de tudo que um cristão pudesse avaliar: começou em Juazeiro do Norte, varrendo e espanando numa loja de vender estátua e imagem de santos, perto da matriz de Nossa Senhora das Dores. Depois de dois anos, subiu a vendedor de balcão numa casa de tecido da Rua São Pedro, a rua do comércio forte. Foi lá que aprendeu a ser mais ativo: botou-se a vender tecido ruim por bom e a entender como mexer nos papéis da loja. Subiu mais pra cima. Pegou a patente de gerente da firma. Corria tanto na loja que, no dia da feira do sábado, comia de pé com o prato na mão. E se espalhou: “Pois é, doutor Brandão. Ainda hoje, num sou um rico de se esborrotar. Mas tenho uns cacarequinhos. Não é, compadre Ernesto?”. 

Amaciando os cabelos do tórax, o comerciante ficou aguardando a aprovação do compadre. Desconfiado, Ernesto Ferreira balançou a cabeça de cima para baixo, sem olhar para o chefe da repartição. Meteu-se a engolir mais cerveja, para depois ciscar ossos na bandeja. Onésimo, contente e de bigode espumoso, convidou os dois amigos para mais uma rodada de cerveja. Afinal, pensou consigo mesmo, ele mesmo não poderia deixar entrar pelo ralo aquela chance de dar água na boca. Diante dele, compadre Ernesto lhe trouxera de bandeja a autoridade de lá de dentro da Fazenda do Estado. Tão diferente do compadre, já se mostrando pesado no seu bolso. Da última vez que lhe pedira mais um favorzinho, Ernesto Ferreira enrolou, enrolou, não conseguindo nada. O compadre perdia a graça, não mais lhe cortava fiapinhos de números. Também, dava uma de mane-égua, sem querer se desgrudar dos políticos do PFL. Estava perdendo restinho de força que ainda arrotava na Secretaria da Fazenda do Estado. Por isso, precisava, naquele momento, ele mesmo, Onésimo Gonçalves dos Santos, botar quiabo no passo do chefe à sua frente: "Vamos, meu doutor Brandão, se empanzinar na cerveja. Vamos festejar nosso feliz encontro".    

Entretanto, no momento em que o novo chefe da repartição estadual se animou para mais beber, a esposa dele, em pé, alertava-o para irem atrás dos filhos, deixados em casa sem ninguém. Aquilo deixou Onésimo ofendido. Tentou levar adiante objeções: "Que não se importasse não. Os meninos estavam na proteção de Deus. Ninguém ia fazer munganga com os bichinhos não". Mas o converseiro do Onésimo Gonçalves não conseguiu derrubar a mulher do doutor Brandão. Assim, para agradar a ela, o comerciante, de cabeça baixa, ficou a resmungar entre dentes: “Mãe é mãe. Mãe é mãe”. Teve de parar a lamentação, ao perceber doutor Brandão com a mão no bolso, a fim de retirar a carteira do dinheiro. De imediato, Onésimo repuxou o braço direito da autoridade, quase o arrancando do lugar. E lhe arrotou autoridade: "Peraí doutor, peraí. Não se avexe não. Compadre Ernesto mais comadre Belinha já são de casa. Me conhece como sou lá no meu comercinho. O senhor também pode começar a se chegar no nosso armazenzinho. Apareça lá, doutor. Apareça".

- Está vendo, Brandão? Veja como é meu compadre Onésimo? Ele se deu com sua cara. Pronto, do jeito que ele é aqui, também é lá em seu grande comércio.

Após os abraços efusivos da despedida e os fortes apertos de mãos, Francisco Brandão Magalhães com a esposa deixaram a festa para trás. Enquanto dirigia seu automóvel, ele pensou sobre a vida do Onésimo Gonçalves dos Santos, próspero comerciante de Juazeiro do Norte, vindo da Paraíba e com pinta de sabido. Pensou na insinuante despedida dele, apertando-lhe fortemente o braço, barrando-lhe a puxada da carteira. Pensou ainda no Ernesto Ferreira, colega desde o tempo de ginásio em Fortaleza, convidando-o insistente na repartição, pela manhã, a irem à penúltima noite de festejo a São Francisco: “Vamos lá, Brandão. Você vai ver. Não há problema nenhum. Com essa gente, é só questão de paciência”.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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