Saraiva e o mundo (Dantas de Sousa) - conto

 

Saraiva. Vinte e três anos sem me encontrar com ele. Manhã de agosto de 1979. Saraiva de cabelos grisalhos. Veio-me a vontade de lhe dar uma saraivada de palmas pelo nosso reencontro. Amigo de infância, jogador de defesa do nosso time de futebol, no areal do terreno de um campo de aviação abandonado por batistas dos EUA. Saraiva jogava só meio tempo, pois era o dono da bola. Jogava que jogava, mas não dava para o futebol.

- Onde você está morando, Saraiva? - perguntei-lhe com meu carro estacionado sobre as linhas do trem, na Rua São Benedito. Mas Saraiva, antes de me falar algo, buscou me aconselhar:

- Só atravesse as linhas do trem, José Belo de Carvalho, depois de fazer o sinal da cruz. Nas linhas do trem, têm exus de monte e todos são governados pelo chefe deles, Seu Tranca-rua.

Surpreendi-me com a conversa esquisita de Saraiva. Ele nunca me havia falado sobre esse assunto. Ou melhor, ele nunca conversou comigo sobre religião, espiritismo, espiritualismo. E Saraiva insistiu:

- Saia logo José Belo, de cima da linha. Você nem desconfia de onde está pisando. Traz má sorte, atrapalha seus negócios e sua vida. Faça logo o sinal-da-cruz e pule fora. 

Não fiz sinal-da-cruz, porém lhe desejei saúde e felicidade. Passei a primeira no carro e prossegui na Rua São Benedito. Avistei, pelo retrovisor, Saraiva de moto parada, benzendo-se antes de atravessar as linhas.

Duas semana após, reencontro-me com Saraiva, na Rua Santa Luzia. Ele abria a porta da agência do INSS. Mas parou para me alertar que estava de hora marcada para ser atendido e, por isso, não poderia demorar em conversa. E eu avisei a ele que, por coincidência, também iria entrar no INSS. A minha senha era, depois da dele, quatro pessoas. 

Como Saraiva gostava de conversar, assim como eu,, após nos apresentarmos no guichê ao atendente, sentamo-nos ao lado do outro. Pouco a pouco a conversa foi esquentando. Daí, procurei relembrar-lhe de quando se atravessa as linhas de trem. Lembrei-lhe que, segundo o povo dizia, em Juazeiro do Norte, se o sino badalasse na igreja dos franciscanos eram por duas coisas: ou para chamar os fiéis à missa, ou para alertar a transeuntes a passagem do trem. 

Mas minha brincadeira não agradou a Saraiva. Ele me pediu para não brincar com coisa séria. Desatou a me explicar sobre o mundo dos espíritos. E me fez ver como chegou a ser espírita. Dedicou-se a trabalhos de mesa-branca, a dar palestras, passos, além de receber espíritos. Depois, enveredou na umbanda. Ensaiou sobre a beleza do sincretismo, a mistura do rito afro com o catolicismo. Ainda bem que ele deu uma pausa para descansar a fala. Já eu não conseguia entender o seu converseiro espiritualista e a sua intimidade com espírito de mortos. 

Anos atrás, conhecia Saraiva um vendedor de livros. Lembrei-lhe de quando eu lhe comprei uma coleção de contos de autores internacionais, a qual ele me deu  como brinde quatro reproduções de pinturas de famosos europeus. Ah, lembrei-me também agora, Saraiva me tentou vender um livro que segundo ele, fora escrito por um santo da igreja católica, São Cipriano, o qual o povo se referia a ele como "o livro da capa preta". Para ele, aquele livro era indicado como o melhor para ser usado por mim quando eu precisasse resolver qualquer problema pessoal. 

Ainda antes do nosso atendimento, Saraiva me relatou apressado como se desenvolvia o trabalho de mesa-branca, como se desenvolvia um médium, como era uma gira em terreiro, além de me fazer ciente do valor do tarô e da numerologia. Tudo isso, para ele, lhe servia para a felicidade de qualquer ser humano. De súbito, ele me fez a pergunta: "Você ainda é católico, José Belo?".

Expliquei-lhe também rápido. Não me envolvia no catolicismo. Ia à missa, me confessava, comungava. Tinha minhas devoções. Mas não vivia dentro de igreja. Saraiva, então, me aprovou, desaprovando-me. Ainda bem que mudou de assunto. Ele continuava a vender livros. Vendia muitas coleções e ganhava boas comissões. Era difícil ser vendedor de livros, contudo deveria saber vender. Havia coleção que valia dez reais, porém vendia por quinhentos, seiscentos reais. Mas quando queriam duas ou três coleções, ele abaixava para trezentos, duzentos. Menos disso, dava-lhe prejuízo.

Veio-me à lembrança de um dia, muito antes do nosso encontro na linha do trem da Rua São Benedito, haver me deparado com Saraiva na Rodoviária de Juazeiro do Norte, no horário da noite para Fortaleza. Estava eu no primeiro semestre  do curso de engenharia civil. Fomos juntos no ônibus e, por coincidência, em cadeiras juntas. Interessante que ele lia um livro dos que carregava na sua pasta grande e pesada. Durante a madrugada, ele me comentou que precisava lê-lo, ou mesmo passar a vista por cima, para saber vendê-los.

- Já cheguei a ler, José Belo, disse-me Saraiva, batendo em meu braço, como se me acordasse na agência da Previdência. E continuou a sua explanação: - Eu leio livro de literatura, como de Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rego... Livro de culinária a best-seller... Mas o que eu prefiro ler é Kardec, Chico Xavier e o meu preferido que é o de São Cipriano, o capa preta. 

Segundo Saraiva, o capa preta servia pra tudo, principalmente para melhorar as vendas. Empolgou-se e repetiu: participava de mesa-branca, dava passe no povo, chegava fazer psicografia durante sessão de mesa-branca... Já, no terreiro, era cavalo de santo, ou cambono. Ficava na ponta da mesa, a dona do terreiro de lado: ele pensava numa entidade e, de repente, ela chegava no corpo da mulher, já o saudando e se entrosando para resolver trabalhos... Até que enfim, o placar dos guichês de atendimento apresentou seu número. 

O bom foi que terminamos iguais nos guichês. Recebemos o mesmo aviso: ficarmos aguardando notícias pelo correio. Quando pensei que havíamos terminado a conversa, Saraiva a esticou na calçada da agência do INSS até a Praça Padre Cícero. Não consegui me desvencilhar do Saraiva. Sentamo-nos no banco da praça. Deixei-o falar. Primeiro reclamou do descaso municipal no principal logradouro público de Juazeiro do Norte. Segundo, confessou-me que não mais trabalharia para político nenhum, devido à perda eleitoral do seu candidato. E todo satisfeito, gabou-se: "Mas consegui, José Belo, a minha casa de oração. Trato de todo tipo de gente, principalmente gente pobre. Mas os ricos também precisam dos nossos trabalhos espirituais”. 

Resolvi mudar nossa conversa: perguntei a Saraiva se ele abandonara a vendagem de livros. Ele, todo satisfeito, anunciou-me haver inaugurado uma loja de livros. E me interrogou: "Adivinha, José Belo, qual o livro que mais vendo lá?“. 

Como eu não lhe respondi, Saraiva bradou, como se quisesse a praça toda ouvir: “O de São Cipriano, José Belo, o capa preta”. E me adiantou uma relação de compradores: comerciante, industrial, empresário, contrabandista, servidor público,  dono de jogo de bicho, mulher com problema sentimental, homem desconfiado de traição, e mais gente de todo lugar. Por fim, revelou-me: "Noutro dia, apareceu um sacristão duma igreja católica daqui. Chegou desconfiado, dizendo que o livro era pra ele. Mostrei pra ele o livro de São Cipriano. Aí ele pegou, mexeu as páginas e me revelou que ia levar ele pra dar de presente ao seu vigário, como presente de aniversário". No fim, Saraiva soltou uma gargalhada tão estridente que fez voar uns  pardais de cima do pé de benjamin.

Paramos nossa conversa e nos despedimos. Depois daquela longa conversa com Saraiva, quis o destino deparar-me com o inesperado encontro com ele na passagem sobre as linhas de trem, a da Avenida Padre Cícero, num final de tarde de sexta-feira de abril de 2002. 

Encontrava-me parado no meu carro, antes do sinal vermelho da linha ferroviária. Passei a observar uma camioneta cinza-metálica. Dentro dela, alguém de óculos escuros, saudava-me com a mão esquerda pela janela entreaberta, a do motorista. Camioneta bonita, nova, reluzente. Minha mulher me avisou que era aquele vendedor de livro de macumba. Realmente, era Saraiva na camioneta cinza-metálica. Cabelo alourado, paletó azul-escuro. Em seguida, apressou a camioneta. 

Foi a última vez que vi Saraiva. Imprudente, num descuido ou... Adiantou-se bem no momento em que o trem vinha carregando gasolina e gás. Vinha apitando sem parar. Coisa do destino?... Não entro por aí  não. A camioneta ficou um maracujá engelhado. Saraiva ensanguentado, no meio das ferragens. Durante a madrugada da sexta para o sábado, não fechei os olhos no seu velório. Após conversar com dois amigos do tempo do futebol, preferi meditar diante de Saraiva, no caixão, livre de superstições, do capa preta e do mundo. 

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

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