Sarataio (Dantas de Sousa) - conto

Na madrugada, durante o velório de Zeca de Carvalho, cinco amigos íntimos dele, sentados em roda, conversavam no alpendre, ao lado da casa. Escolheram o local para se afastar da rezaria das mulheres em torno do caixão, na sala de visitas, e do povo em fila única, vindo dar o último adeus ao farmacêutico, amigo dos pobres.  Após Suliana, pela terceira vez, lhes terem servido café e chá de capim-santo, um dos anciãos, sem soltar a bengala, voltou a conversa sobre a bondosa atenção do Zeca de Carvalho para com seus fregueses. Segundo o ancião, o farmacêutico, mesmo sofrendo com o câncer de próstata, mostrou-se aos seus fregueses alegre e prestativo.

- Eu só sei que Zeca foi grande amigo dos pobres, disse por fim o ancião, batendo a bengala no mosaico. - Como sempre digo: quem bolou o slogan "amigo dos pobres", acertou em cheio. 

Os outros quatro amigos concordaram com Demerval Pereira. Até traçaram frases de elogio para Zeca de Carvalho. Aos poucos, porém, se calaram. Ficaram de cabeça baixa, como se observassem algo no chão. No entanto, João Alves Sobrinho, famoso proseador, descruzou as pernas e pediu licença aos amigos para lhes contar um fato, que provava como Zeca de Carvalho sabia se comunicar de modo fácil. Explicou-se João Alves: "É só pra distrair nós cinco".

Os quatros levantaram as cabeças e pregaram os olhos nele. Para João Alves, a licença lhe foi dada. Então, iniciou a sua história: num sábado, por volta de meio-dia, uns meses depois da última eleição municipal, seu compadre Zé Néri, cuidador do terreno seu lá no Carité, tinha vindo a toda pressa, de bicicleta, comprar um remédio para o filho, que ficara derramando sangue, após ter o menino se cortado com facão.

Mas assim que Zé Néri encostou a bicicleta na parede da calçada da farmácia de Zeca de Carvalho, e de camisa ensopada de suor, ficou a espiar para dentro do estabelecimento. Tomou um susto: Zeca de Carvalho não estava sentado lá no seu birô. Lembrou-se logo de que o farmacêutico estava em hora de almoço. E o pior: Zé Néri enxergou um empregado novato na farmácia. Debruçado pelo lado de dentro do balcão, o novato conversava com outro rapaz, sentado no banco alto, no lado de fora do balcão.

Nenhum dos dois se importou com Zé Néri, aflito, a remexer os bolsos, à procura da caixa do remédio. Sem nem achar o escrito, se deixou a olhar para as prateleiras de remédio. Apesar de haver comprado a pomada por duas vezes, não se lembrava do nome dela. Na primeira vez, trouxera o nome dela escrito no papel. Na outra ocasião, foi mais fácil: mostrou ao balconista a caixa seca. Mas, daquela vez, ficou com vergonha de atrapalhar a conversa dos dois. Então, se encostou à porta de entrada, para não voltar para casa de mãos abanando. 

Dali a pouco, entrou na farmácia um homem de idade. Zé Néri levantou a vista: o senhor tinha a pele enrugada, trazia chapéu de palha à cabeça e o saco da feira às costas. Observou o desconhecido pedir um remédio, apontando o dedo indicador para o alto de uma prateleira. Zé Néri se sentiu um traste no mundo, já que era analfabeto. Prestou mais atenção ao freguês saindo da farmácia. Tomando fôlego, devagar, Zé Néri encostou-se no balcão, a metro e meio dos dois rapazes. Mesmo assim o novato nem se voltou para ele. Falava empolgado para o amigo sobre uma vaquejada: havia apostado nos dois afamados corredores do Carité: Neném e Zé-sapoti.

Zé Néri se encantou com a conversa do novato para o amigo: o cavalo preto, disparara na frente, e o cavalo amarronzado se igualou no traseiro do boi. Quando faltavam três palmos da linha, Neném, no amarronzado, pinotou forte e deu de bandeja o rabo do boi para Zé-sapoti, vaqueiro do cavalo preto. Aí Zé-sapoti agarrou o rabo do bicho, deu a mexidinha, que chega o boi se deitou mansinho dentro das duas linhas. Após respirar, o novato, lá do seu lugar, perguntou empolgado, de voz alta, ao Zé Néri: “Mas que é que essa estátua aí tá querendo?”.

- Seu moço novato, é um que eu preciso dele. Me esqueci o nome do danado, mas daqui a pouco ele se alumeia na minha cabeça. 

Diante da conversa torta do freguês, o novato voltou-se para o amigo e lhe disse que havia ganhado a aposta. Mas Zé Néri cortou a conversa do novato: "Seu moço novato, já sei. O nome dele é sarataio".

- Sarataio? Sarataio? Que diacho de nome é esse?

Zé Néri engoliu a raiva. Ficou a olhar para as prateleiras. Sabia que o sarataio se achava por ali. Destemido, dirigiu-se ao novato, anunciando que o empregado anterior, num instante havia achado a caixinha verde. Assim fez o novato se levantar do banco. Lentamente, arrastou a escada. Subiu-a devagar, porém prestando atenção à conversa do amigo sobre o quebra-pau que ocorrera após o comício da oposição, num bar próximo da Rua do Pau. Um homem foi morto à facada, e outro levado às pressas para o hospital. Enquanto Zé Néri escutava o ocorrido, o novato passava o dedo sobre as caixas. Na letra S, parou. Procurou, procurou, mas nada. Voltou-se para o freguês, afirmando-lhe, no alto da escada, não haver o sarataio: “Vá, vá buscar a caixa. Não tenho tempo a perder não”. 

Entretanto Zé Néri não gostou do desaforo do novato. Só porque era pobre não deveria ser tratado com aquela arrogância toda. Sentiu vontade de passar na cara do novato que deveria ter mais educação. Mas desistiu. Sentou-se na bancada perto da porta de entrada. De cabeça baixa, aguentou-se a ouvir a conversa chata dos dois no balcão. O novato, empolgado, dizia para o amigo o que ocorrera no comício do partido do Zeca de Carvalho, lá no Carité, logo quando faltava dez dias para o dia da votação.

Foi aí que Zé Néri prestou atenção ao novato contar. Um bêbado inventou de não deixar o povo ouvir o discurso do candidato a prefeito, apoiado por Zeca de Carvalho. O chato gritava sem parar o nome do outro candidato a prefeito, adversário de Zeca de Carvalho. Batia o bêbado com força numa lata velha de querosene. E se esgoelava: “No Carité, não se vota em zé-mané. / No Carité, não se vota em zé-mané”. 

De tanto bagunçar, Zeca de Carvalho, ainda em cima do palanque, deu a ordem a três guarda-costas para levarem o vagabundo na caçamba de sua própria camioneta. E, longe do Carité, deixassem por lá, sem haver complicação na reta final da campanha.

Antes mesmo de acabar o resto da história, Zé Néri apertava os lábios com força. Nem levantou a cabeça. Engoliu tudo o que ouvira sem se mover do lugar. Afinal, o embriagado tinha sido ele mesmo. E Zé Néri ficou a se lembrar daquela sua besteira por causa da cachaça. Enquanto pensava, observou a fila de formiga a andar no mosaico da farmácia. Ainda bem que Zeca de Carvalho apareceu na porta do meio, da farmácia. O farmacêutico, ao ver Zé Néri, convidou-o a sentar-se na cadeira, ao lado do seu birô. Quis logo saber o que o amiguinho estava precisando. 

- Seu Zeca de Carvalho, eu vim pra pegar o sarataio.

O novato se adiantou: “Taí, Seu Zeca de Carvalho, a teimosia dele, desde que chegou. Quase que derribo as prateleiras de tanto procurar um tal de sarataio”. Zeca de Carvalho sorriu levemente. Resmungou para o novato que ele ainda iria se haver com a linguagem do povo humilde. Erguendo-se do birô, arrastou a escada até o meio da fila de prateleiras. Segurando-se firme nas traves da escada, alcançou, no alto da prateleira, uma caixa verde, com listra azul. 

Depressa, o novato advertiu a Zeca de Carvalho: “Isso daí não é  sarataio não, Seu Zeca de Carvalho. É anasseptil”. Antes de entregar a caixa ao cliente, o farmacêutico, de voz pausada, explicou ao novato o que significava sarataio: “Meu rapazinho, sara quer dizer cura. E taio, ou talho, é corte. Assim, o anasseptil, que o meu amiguinho veio comprar, é um remédio que sara talho, ou que cura corte”.

Enquanto o novato procurava se desenrolar da explicação, Zé Néri pagou apressado o remédio ao dono da farmácia, agradeceu-lhe com sorriso de criança, desaparecendo porta fora. Abalou-se na bicicleta em busca do Carité, que nem vento o pegava. Chegou esbaforido, mas todo ancho, comentando alto que conseguira o sarataio, mesmo contra a vontade de um funcionariozinho novato, da cara de tacho, que merecia era ter levado umas bordoadas no focinho, ou uma triscada de faca na pança, para aprender a tratar os fregueses de Seu Zeca de Carvalho, amigo dos pobres.

JN. Dantas de Sousa, Eurides.

Texto literário de Dantas de Sousa - conto

Texto literário de Dantas de Sousa - crônica

Texto literário de Dantas de Sousa - poema

Literatura do Folclore: Conto

Literatura do Folclore: Ditado e Provérbio

Literatura do Folclore: Qual o cúmulo de...